Artigos

‘Nós descobrimos só uma parte do que existia’

Estado de São Paulo


Piercamillo Davigo, presidente da seção criminal da Corte de Cassação da Itália, fala sobre diminuição em número de condenações após Operação Mãos Limpas

 

Piercamillo Davigo, presidente da seção criminal da Corte de Cassação da Itália Foto: Alex Falcão/Futura Press

Após 25 anos de Mãos Limpas, qual o balanço do combate à corrupção?

Em 1994, por causa do que havia sido descoberto pelas investigações, cinco partidos desapareceram nas eleições. Três deles tinham mais de 100 anos. Todavia a mudança foi mais formal que real, no sentido que as pessoas estavam em novas legendas, mas sobretudo nos últimos 15 anos, a principal atividade da política não é combater a corrupção, mas enfrentar as investigações contra a corrupção. Foram adotadas leis que aboliram ou modificaram crimes, leis que fizeram as provas voltar à estaca zero ou as tornavam inutilizáveis e leis que fizeram com que as pessoas não pudessem ser processadas. Muitas delas caíram por decisão da corte constitucional ou foram interpretadas de modo razoável pelos magistrados, portanto, não causaram todo o dano que podiam causar. No entanto, muitos processos foram concluídos com sentenças de absolvição não porque os acusados eram inocentes, mas porque as provas feitas contra eles foram retiradas. E o resultado foi a queda de condenações por corrupção. Nos anos 2000, o número de condenações foi um décimo daquele de 1995.

Somente um décimo?

Um décimo cada ano. De tal forma que na Itália registre um número de condenações por cem mil habitantes inferior ao da Finlândia, que é o país menos corrupto do mundo.

Quer dizer que há corrupção, mas não as condenações?

O que falta são as condenações. Porque não é nem mesmo possível descobrir os corruptos, quando são descobertos é muito mais difícil condená-los. Esse é o problema. Ora, partir de 2012 a situação mudou. Não porque houve uma melhora da política, mas por causa da pressão da opinião pública, especialmente no contexto da grave crise econômica, que obrigou o governo e o parlamento a fazer alguma coisa. Todavia, as normas existentes, não creio que sejam adequadas para confrontar o fenômeno. Em particular faltam duas coisas essenciais. De um lado é necessário a aplicação das medidas previstas para os colaboradores judiciais, como no casos de criminalidade organizada. Isso quer dizer: a forte redução da pena e aproteção às pessoas (que colaboram), o que não existe na Itália. Existe somente uma leve redução da pena para quem colabora.

Para os crimes de corrupção não existem os benefícios oferecidos para os que colaboram nos casos de máfia?

Exatos, não existem. E não existe nem mesmo as proteções previstas. A segunda coisa que considero indispensável para combater a corrupção são as operações sob cobertura (ações controladas por meio de infiltração de agentes). As operações cobertas na Itália são possíveis em muitas áreas, como o terrorismo, o tráfico de armas, de drogas, a criminalidade organizada e até mesmo a pedofilia. Mas não são permitidas em matéria de corrupção. E não tem jeito de convencer o parlamento a aprovar a introdução dessa regra. Diante de uma fraude em uma licitação como a formação de cartel para a divisão de um contrato público, se não é possível infiltrar um agente que simule ser um empresário para participar da concorrência não é possível descobrir esse tipo de acordo a menos que alguém denuncie.

De todas a acusações feitas pelos políticos contra os senhores, qual mais o incomodava?

Não ser imparcial. A imparcialidade é essencial para um magistrado. Trata-se daquilo que os criminólogos chamam de técnica da neutralização, isto é, a justificação que um culpado dá para si mesmo para outros de modo que o fato pareça menos grave. Dou um exemplo: uma das coisas mais extravagantes que aconteciam quando um acusado era citado era ele dizer: “E o outros, por que vocês não pegaram os outros? ” Pois bem, na Itália, identificamos apenas 3% dos autores de furtos de veículos. Tirando os casos em que as pessoas são apanhadas em flagrante, é difícil prender alguém que roubou um carro. Jamais encontrei um ladrão de carro que me dissesse: “E os outros? Por que você não prendeu os outros?” Eu teria respondido: “Queria começar com você. Se quiser, pode me dar a lista dos teus colegas que eu processarei eles também”.  Mas, na Itália, essa coisa é repetida como se fosse uma coisa sensata na Itália, quando não faz sentido pensar que para processar alguém é preciso descobrir os autores de todos os crimes. Quando você reflete sobre isso, você percebe que é uma bobagem.

O senhor diz que as pessoas investigadas em Mãos Limpas começavam a confessar no interfone, quando a polícia chegava?

Não todos. Um dos investigados começou a confessar no interfone.

Mas como isso aconteceu?

O ponto é que todos previam que seriam presos porque havia o efeito dominó.  Se alguém falasse, daria os nomes de quem lhe havia dado dinheiro e para quem havia dado dinheiro. Depois, todos aqueles que  haviam recebido dinheiro começavam  a considerar, por sua vez, que também seriam presos. E assim procuravam se apresentar para confessar as coisas que imaginavam que tivessem sido descobertas.

Nestes 25 anos, o que mudou na custódia cautelar dos investigados na Itália?

Na Itália, as normas de custódia cautelar foram modificadas para limitar os casos de custódia. Obviamente depende muito da interpretação que pretende dar. Por exemplo, como verificar o perigo de reincidência. Aqueles que conhecem o fenômeno da corrupção sabem que quem comete esse crime o faz há muito tempo. Explico: a corrupção é um crime serial. Quem se vende não se vende em uma única ocasião, se vende muitas vezes por causa da impunidade. Do mesmo modo, quando alguém paga para obter um contrato público, o seu sucesso empresarial não se deve à sua competência gerencial, mas ao fato que tem relações privilegiadas com quem se corrompe e, portanto, continuarão a se corromper enquanto estiverem na atividade empresarial.

Diminuíram na Itália as possibilidades para se prender um corrupto?

Não é que diminuíram, tornaram-se mais difíceis. Motivações mais complexas são necessárias e existem mais dificuldade para pôr alguém na cadeia do que em prisão domiciliar. Nesse tipo de crime, basta pouco para mudar uma qualificação. E os defensores podem se comunicar entre eles, conseguindo tornar o fato menos grave.

O senhor diz que se deve pôr os corruptos na cadeia porque esse é um crime serial…

Se o investigado por corrupção decide colaborar, decide falar, torna-se inidôneo para cometer esse crime, pois ninguém mais pegará dinheiro com ele e ninguém também dará dinheiro para quem delata. Não sendo mais confiável, seria possível até mesmo não puni-los. O problema são aqueles que mantêm a capacidade de chantagem porque se mantiveram em silêncio. E são em condição de chantagear os seus cúmplices que não foram descobertos. Assim, é necessário ter a custódia cautelar e o cumprimento da pena na prisão porque os priva da possibilidade de chantagear.

Depois da condenação em definitivo os corruptos devem cumprir pena na cadeia ou receber penas alternativas?

Duas pessoas que foram condenadas em 1992 e em 1993 foram presas durante as investigações sobre a Expo 2015 em Milão porque não se desiste. Naquele tempo, haviam ficado em silêncio.

Fiz essa pergunta porque pensava no caso de Arnaldo Forlani (primeiro-ministro de 1980-1981 e secretário da Democracia Cristã, então o maior partido da Itália), que foi condenado por corrupção, mas cumpriu a pena prestando serviço social…

O que posso dizer é que na Itália as penas com menos de 3 anos podem ser cumpridas por meio da prestação de serviço social, que é uma medida feita para reintegrar na sociedade pessoas provenientes de setores marginalizados da sociedade e não para reintegrar quem fosse primeiro-ministro.

Portanto, personagens importantes como Forlani não foram para a cadeia?

Antes de tudo, não cito nomes de investigados com os quais me ocupei, mas na Itália essas medidas (alternativas) não deviam ser aplicadas a pessoas que pertencem à classe dirigente do ponto de vista político, econômico ou financeiro.

No Brasil, um ex-presidente da Câmara está na cadeia e outros políticos importantes. Lava Jato deu frutos maiores do que Mãos Limpas?

Nâo conheço a situação brasileira em detalhe, portanto, não posso fazer um juízo. Não posso nem mesmo fazer uma comparação porque não tenho todos os elementos para uma avaliação.

Mas quando se pensa que importantes figuras da vida política…

Posso apenas dizer que a situação italiana é absolutamente insatisfatória. Na Itália, para os delitos da classe dirigente, não somente para a corrupção, mas para os delitos da classe dirigente, temos somente um vigésimo dos detentos por cem mil habitantes que existem na Alemanha. Nós continuamos a fazer processos da mesma forma, às vezes alguém é condenado, mas é muito mais difícil. Para mim, aquilo que nós descobrimos é somente uma parte do que existia e muitos conseguiram se manter em silêncio.  Olha, em um certo momento da minha vida profissional me tornei uma espécie de rei Midas. Porque quando processava alguém, ainda mais se era condenado, mas permanecia em silêncio, essa pessoa iniciava uma fulgurante carreira política.

Por que demonstravam que eram confiáveis?

Sim. Era confiável porque havia ficado calado.

Uma outra coisa mudou na Itália: o consenso em torno de Mãos Limpas. Por que a operação perdeu o apoio que tinha no começo?

Sobretudo porque nenhum fenômeno popular é eterno. E depois porque houve uma campanha de jornal e de televisão contra as investigações por parte de pessoas que possuíam jornais e canais de TV.

Berlusconi?

Não falo em nomes. E usavam a TV estatal  porque quem está no governo controla também as TVs estatais. Eles pensaram em salvar-se desacreditando a magistratura, mas o resultado foi que não melhoram a sua imagem na opinião pública; apenas desacreditaram também a magistratura.

É verdade que os políticos italianos continuam roubando. O que mudou foi que eles não se envergonham mais?

Digo que os políticos que roubam – não são todos que roubam – pararam de se envergonhar. No passado, quando os prendíamos, se envergonhavam, agora não.  Penso em um deles que foi condenado recentemente e quando se soube o que ele havia feito com o dinheiro, disse: “Era dinheiro meu, faço com ele o que eu quero”. Não. É dinheiro do contribuinte e não dele.

Aprenderam a roubar melhor do que os políticos de antes de Mãos Limpas?

Não é melhor. É menos organizado do que antes, portanto, é mais difícil de combater. Antes organizavam tudo na direção dos partidos que dirigiam o esquema de propina. Isso parece não acontecer mais, mas isso não significa que se rouba menos

O senhor tem um colega – Gherardo Colombo – que pensa que a educação é mais importante do que as sentenças para combater a corrupção…

Não só para a corrupção, mas também para o furto de carros. Ele tem essa visão, mas eu não penso assim. Os homens agem sobretudo de acordo com seu interesse. Se convém comportar-se bem, aumenta o número dos que se comportam bem. Se convém se comportar mal, aumenta o número daqueles que se compartam mal, independentemente da educação.

Marcelo Godoy

 

 

Sobre o autor

CDPP