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A volta do repasse cambial?

O real experimentou depreciação de 8,7% em agosto, 7% no ano, e cerca de 1% entre o início de setembro de 2018 e o de 2019. Como é usual em momentos de depreciação da moeda, ressurge a discussão sobre o potencial repasse cambial para os preços, e os consequentes desafios para a política monetária. Antes de discutir esse tema, cabe notar que o movimento recente do real tem sido acompanhado, em boa medida, por quedas dos preços de matérias primas, de modo que o impacto sobre os preços de importados tende a ser amortecido – nos doze meses findos em agosto, o IC-Br, índice de preços de commodities em reais, compilado pelo Banco Central, caiu 8,9%.

Em linhas gerais, o repasse cambial depende das circunstâncias, não é algo fixo e determinado ao longo do tempo. Um de seus determinantes é a própria magnitude da depreciação. Adicionalmente, o repasse tende a ser mais intenso quando a economia está aquecida e as expectativas de inflação desancoradas. Tende a ser maior, também, quando o movimento cambial é percebido como irreversível. Finalmente, um outro condicionante importante é o ponto de partida: o repasse tende a ser mais (menos) intenso quando a depreciação ocorre a partir de um patamar de taxa de câmbio subvalorizada (sobrevalorizada).

Como indicado acima, até o momento, a depreciação do real é moderada. Mesmo se tomarmos o final de janeiro como base (o real começou o ano em apreciação), ainda teríamos um movimento de pouco menos de 14%, bem menos do que o observado em outros momentos de fragilidade cambial.

Há pouco debate sobre o estágio cíclico da economia: a taxa de desemprego elevada (11,8% ante uma média histórica de 9,6%) e a taxa de utilização da capacidade abaixo da média (75,4% vs 80%) indicam a existência de ampla ociosidade. Já as expectativas inflacionárias encontram-se ancoradas em toda a extensão do horizonte de projeção para o qual metas de inflação foram estabelecidas.

Desde o momento de maior apreciação, em meados de 2011, o real viveu uma fase de depreciação gradual, até o final de 2014, seguida por depreciação mais intensa em 2015 (49% de ponta a ponta), estabilidade em 2016 e 2017, após certa apreciação, e nova rodada de depreciação em 2018 (17%). Análises de valor sustentável da moeda, baseadas no critério da sustentabilidade do equilíbrio externo (um déficit em conta corrente próximo a 2% do PIB, no caso brasileiro), como as usualmente implementadas pelos economistas do FMI e outras organizações internacionais, apontam para o patamar de taxa de câmbio de R$ 3,50-3,60 por dólar, o que indica potencial de apreciação do real.

Enfim, tanto a trajetória cambial recente, quanto estimativas de taxa de câmbio alinhadas a fundamentos, sugerem cautela quanto à conclusão que estaríamos diante de um movimento irreversível – ainda mais por que a demanda por divisas parece estar sendo inflada por um processo de desalavancagem das empresas, que em algum momento irá arrefecer.

No entanto, o outro lado desta moeda é que, se a depreciação ocorre a partir de um patamar já subvalorizado da taxa de câmbio, tende a se deparar com margens já comprimidas e, consequentemente, a exercer maior pressão sobre os preços. Esse seria o principal fator de cautela, quando consideramos o risco de impactos inflacionários derivados da corrente depreciação. Por outro lado, em trabalho de 2018, economistas do Banco Central consideram diretamente a capacidade das firmas em absorver choques de custos, por meio de um índice baseado no comportamento das ações, e esse mostra um patamar próximo ao máximo da série, indicando margem operacional ainda confortável.

Levando em conta esses fatores, o mais provável é que o repasse cambial siga sendo limitado – os economistas do Itaú trabalham com um coeficiente de 7%, de modo que uma depreciação do real de 10% elevaria a inflação em 0,70 pontos percentuais em um horizonte de 18 meses (incluindo efeitos secundários).

Esse cenário básico enfrenta riscos. Depois da recuperação observada no segundo trimestre, há sinais que a atividade econômica voltou a perder força, o que indica que a margem de ociosidade da economia poderia seguir ampla, e talvez crescente, por mais tempo. A propósito, com base nos dados até aqui divulgados, não se pode descartar que o crescimento do PIB trimestral volte ao terreno negativo no trimestre corrente.

Nesse contexto, o repasse cambial pode ser ainda mais limitado. No outro extremo, eventos que ocasionem uma desancoragem das expectativas de inflação, como, por exemplo, o enfraquecimento da já gradual estratégia de ajuste fiscal, podem atuar no sentido de elevar o repasse cambial. Uma intensificação do processo de depreciação do real, causada por eventual deterioração adicional do ambiente internacional – caracterizado por sinais de desaceleração global em contexto de esgotamento da capacidade para políticas anticíclicas – iria na mesma direção.

Tanto a magnitude da depreciação cambial quanto as condições de contorno não parecem apresentar, no momento, razão suficiente para o Banco Central alterar seu aparente plano de voo para a política monetária. Caso tais condições venham a se alterar, as autoridades poderão, tempestivamente, redesenhar sua mensagem e estratégia.

Fonte: Valor Econômico, 5/9/2019

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita