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“O Brasil ainda produz ‘carroças’ em vários setores”, diz cofundador da Natura

Para empresário, abertura da economia deverá aumentar a competitividade e a produtividade das empresas e ampliar o poder de compra do consumidor

Entrevista com Pedro Passos, cofundador e copresidente do Conselho de Administração da Natura

Por José Fucs

O empresário Pedro Passos, cofundador da Natura e hoje copresidente do Conselho de Administração da empresa, é uma voz rara entre seus pares a apoiar a ampla abertura econômica do País. “O ciclo de substituição de importações acabou, apesar de alguns não terem se dado conta disso”, afirma.  Nesta entrevista ao Estado, concedida em seu escritório, na região da avenida Faria Lima, na zona sul de São Paulo, ele diz também que, em razão de uma proteção tarifária de até 35%, o Brasil ainda produz “carroças” em vários setores – e “carroças” caras.

Segundo Passos, o aumento de concorrência proporcionado pela abertura deverá favorecer a melhoria da produtividade das empresas, estagnada há 20 anos, a redução de custos dos investimentos e a ampliação do poder de compra da população.  Em sua visão, a abertura tem de contemplar não apenas a indústria, mas também o setor de serviços, e deve impulsionar os setores dinâmicos da economia e deixar para trás os que só conseguem sobreviver com tarifas de proteção elevadas. “Precisamos ficar com aquilo que tem mais futuro, que as novas alocações de capital vão determinar”, afirma.

Recentemente, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) divulgou um estudo segundo o qual uma eventual redução de tarifas do Mercosul reduziria o PIB de dez dos 23 setores industriais do País e comprometeria a retomada do crescimento. Como o sr. vê a proposta de abertura econômica do governo, de corte unilateral de 50% nas tarifas do Mercosul?

O modelo atual já não resiste mais. Hoje, poucos setores no País são contra a abertura econômica, pelo menos no discurso oficial. Todo mundo aceita que a abertura é inevitável.  A discussão é mais como, com que velocidade e com que intensidade nós vamos abrir a economia. Acredito que a abertura é  fundamental para aumentar a competitividade e a produtividade, que está estagnada há 20 anos, e para promover o crescimento sustentável. É lógico que há o lado fiscal, que está sendo tratado desde o governo Temer, com o teto de gastos.  No governo Temer, houve também a reforma trabalhista. Agora, implementamos a reforma da Previdência e a Lei de Liberdade Econômica, já com efeitos positivos na economia. Hoje, a gente está com um taxa de juro razoável, de 5% ao ano, não ao mês. Nunca vi isso. A seguir, devem vir as reformas tributária e administrativa, além de uma série de outras providências, como a melhoria da infraestrutura e as privatizações. A abertura faz parte dessa estratégia para alavancar a economia brasileira, mas o governo tem de liderar o processo, porque isso não vai emergir do mundo empresarial, de baixo para cima.

Embora o Brasil seja considerado um dos países mais fechados do mundo, a abertura costuma provocar calafrios no setor industrial. Muitos representantes da indústria têm mentalidade protecionista, defendem a política de substituição de importações e apoiam a manutenção dos subsídios.  Como o sr. analisa essa posição?

O ciclo da substituição de importações acabou, apesar de alguns ainda não terem se dado conta disso. É inconcebível no mundo de hoje imaginar que alguns setores – e setores relevantes, sensíveis para a economia como um todo – ainda tenham tarifa de proteção de 35% (máximo permitido pela Organização Mundial do Comércio), como o têxtil, o automobilístico e o de brinquedos. É onerar demais o consumidor brasileiro e transmitir um custo regressivo para a sociedade.

Na prática, de que forma esse protecionismo onera o consumidor?

O garoto brasileiro que vai à escola, por exemplo, paga mais pelo computador do que o americano. Além do mais, ainda temos uma proteção no setor industrial, na área de bens intermediários – bens de capital, comunicação, informática. É um fator impeditivo de desenvolvimento na veia, porque todas as cadeias produtivas dependem desses insumos. Por isso, desonerar investimento é importante. Poder comprar matérias-primas mais baratas é importante. A carga tributária, que normalmente é baixa para insumos e tem uma escalada no produto final, aqui tem um vale, com a proteção que vigora nos bens intermediários. Isso inviabiliza muitas cadeias produtivas. É uma situação que precisa ser resolvida. Fora o problema das altas tarifas, falta uma visão estratégica da política tarifaria.

O sr. disse que o ciclo anterior, de substituição de importações, acabou. Falou também que a indústria admite que a abertura é inevitável. O que o faz ter tanta convicção de que o País vai deixar essa política para trás?

Primeiro, os resultados que a gente vem obtendo no País, com a indústria perdendo relevância. Numa análise fria, nós vemos que é melhor mudar de direção. Se você olhar para o cenário global, como estão organizadas as cadeias de valor? A maior parte do PIB (Produto Interno Bruto) industrial hoje é de multinacionais. Elas já estão distribuídas globalmente. Os países é que não estão entendendo o que está acontecendo, mas o recado é esse. É só olhar para o mundo que a gente vê para que lado tem de  ir.

Vai haver resistência em relação à abertura, não?

Vai. Temos de fazer um processo responsável e levar em consideração os ativos importantes que o Brasil tem. Também temos de entender que a abertura melhora a renda média do brasileiro, em função do aumento do poder aquisitivo da população que o corte de tarifas proporciona. Precisamos acabar com essa taxação sobre o consumidor brasileiro e fazer aqui o que a gente tem condições de fazer de forma competitiva.

O sr. não teme que a abertura tenha o efeito que o estudo da CNI aponta?

Não vamos ser ingênuos. Não há dúvida de que algum impacto a abertura terá. Alguns setores que não têm escala global vão sofrer. Mas precisamos ficar com aquilo que tem mais futuro, que as novas alocações de capital vão determinar. Provavelmente, serão setores que juntam acesso a tecnologia e serviços. A gente tem de impulsionar novos setores dinâmicos da economia e não os mesmos, porque estes não estão dando resultado. Agora, esse impacto pode ser bastante atenuado se definirmos um cronograma para fazer esse corte de tarifas de forma gradual, olhando os setores mais sensíveis com cuidado e fazendo uma redução de tarifas mesclada com acordos comerciais.

O sr. acredita, então, que a abertura é um fator de estímulo, e não de desestímulo, ao crescimento econômico?

É um estímulo ao crescimento, por permitir acesso a bens mais baratos por parte da população, o aumento da concorrência, a ampliação do poder de compra e maior escala. Um estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de 2018 estima que um corte genérico de tarifas possa levar a um crescimento do poder de compra de 8% na média, sendo que os mais pobres seriam os mais beneficiados, com incremento de 15%.

Ainda falta muito para transformar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia em realidade. Mas o primeiro passo foi dado pelo governo. Como o senhor vê essa perspectiva, a partir do “protocolo de intenções” assinado com a União Europeia?

Não conheço todos os detalhes do acordo, mas as informações que eu tenho são de que é um acordo muito bom, que vai acelerar o processo de integração do Brasil. Espero que o lado político não atrapalhe a evolução desse acordo, que é muito importante para o País. A União Europeia é um mercado enorme e a gente tem muito o que receber de lá e levar para lá.

O governo também está envolvido na negociação de outros acordos comerciais, com a China, com os Estados Unidos. Qual a sua avaliação sobre essas negociações?

Eu não faria só uma inserção internacional baseada em acordos comerciais, porque a gente não domina a agenda. Alguns acordos demoram muito para se concretizar. Acredito que, se a gente fizer uma abertura bem feita, planejada, acompanhada das reformas estruturais e de acordos comerciais, vamos ter um aumento de produtividade da indústria e podemos ganhar relevância em termos de reinserção do Brasil nas cadeias globais de valor, aumentando a nossa participação no comércio mundial.  Precisamos dominar a agenda e com isso inverter o padrão de crescimento que temos hoje, estimulando os setores dinâmicos da economia que vão poder importar mais para exportar mais. As tabelas que mostram a participação do Brasil no comércio exterior hoje são alarmantes e mesmo no nível de abertura, em relação ao PIB (Produto Interno Bruto), somando exportações e importações, a nossa inserção global é muito baixa. Nós estamos fora das cadeias globais de valor. Precisamos fazer algum movimento no sentido de dinamizar alguns polos econômicos.

Muitos representantes da indústria dizem que o governo está querendo abrir a economia de forma abrupta, repetindo o argumento usado sempre que a abertura está em pauta. Qual seria velocidade ideal para promover a abertura?

Acredito que esses processos não podem ser muito longos, porque as forças se organizam para impedir que eles aconteçam. A gente precisa trabalhar com horizontes que sejam politicamente possíveis. Depende de setores. Alguns têm mais sensibilidade, mas o importante é que a gente tenha uma meta muito clara e definida: “Nós vamos chegar ao padrão médio de tarifas da OCDE em  anos”. Essa sinalização é fundamental porque é a partir daí que as forças de mercado começam a se organizar. Hoje, ainda está indefinida qual é a política comercial que a gente quer.  Não está claro ainda o timing dessa história. Dois anos provavelmente é um período muito curto se a redução for drástica. Não daria tempo de adaptação para as indústrias. Mas, se você falar em cinco anos ou algo parecido, para ir progressivamente reduzindo as tarifas a cada ano, acho que consegue fazer um plano bastante razoável e ao mesmo tempo coordenar isso com as reformas estruturais, que são muito importantes. Só abrir a economia não resolve todos os problemas. Não é uma bala de prata. Tem que andar em paralelo com outras providências.

No início dos anos 1990, o presidente Fernando Collor — temos de dar a ele esse crédito — começou a abrir a economia, o setor automotivo e a área de informática, e dizia que o Brasil fabricava carroças, estava atrasado na tecnologia. Depois, muito dessa abertura foi revertida, por pressões dos empresários, e o processo acsbou não se concluindo, inclusive por causa do impeachment, em 1992. Em sua visão, o Brasil continua produzindo “carroças ”?

Sem dúvida. Eu acredito que, em vários setores, a gente ainda produz carroças – e carroças caras. À medida que você reduz a competição e diminui os investimentos no próprio setor há uma degradação de processos e de competitividade. Por isso, em paralelo, nós precisamos fazer as reformas e remover algumas barreiras burocráticas que o Brasil tem. A parte tributária do Brasil é muito pesada e tira competitividade. O contencioso das empresas brasileiras é maior que os de seus pares no mundo. Não é só pelo custo, mas pela insegurança do investimento. Tem que simplificar a nossa economia, abrir o mercado, deixa as empresas competirem, e tirar esses incentivos fiscais que distorcem a alocação de recursos. Temos de fazer uma alocação correta de recursos e investimentos nos locais certos.

Nos últimos anos, talvez nas últimas décadas, a indústria vem perdendo participação no PIB de forma constante. A que o senhor atribui isso e até que ponto a abertura pode acentuar o problema?

Esse é um fenômeno que acontece em outros países também, por causa do crescimento da área de serviços. Cada vez mais se mescla a área de serviços com a indústria. O modelo atual já se provou inadequado, pois a indústria vem perdendo relevância há vários anos no PIB brasileiro e no comércio internacional. À medida que criamos um mercado protegido e atraímos investimentos externos, as multinacionais que se instalaram aqui ficaram defensoras do mercado fechado. Com mercado protegido, elas vêm aqui, erguem uma fábrica, com padrão de produtividade que não é tão alto quanto o internacional, e acabam virando elementos de defesa da proteção. Agora, se nós quisermos aumentar a produtividade do Brasil, mais do que o deslocamento entre indústrias, serviços, nós temos de melhorar a produtividade dentro de cada setor. Há várias empresas que estão subsistindo com baixa produtividade. À medida que você abre a economia e estabelece uma competição maior, a vida fica dura. Alguns vão sair do jogo, mas a produtividade média vai subir.

Há também uma preocupação com o efeito da abertura no emprego e com a possibilidade de  o Brasil ficar como uma economia secundária no mundo. O senhor não tem essa preocupação?

Ao contrário. A minha perspectiva é que à medida que a gente conseguir retomar a produtividade vai conseguir ter um crescimento sustentável. Aí, virá o emprego. Mas provavelmente serão outros empregos, em outros setores dinâmicos da economia que não os atuais.  Não tem sentido uma proteção do status atual tanto para trabalhadores como para empresários. O Brasil responde por apenas 0,6% das exportações mundiais de manufaturados, sendo que está entre os 10 países mais industriais do mundo.

Os sr. falou da tendência mundial de deslocamento da indústria para os serviços, de uma maior integração da indústria com o setor de serviços, mas muita gente no Brasil vê a perda de importância relativa da indústria como um impedimento para o País se desenvolver. Essa visão ainda faz sentido hoje?

Não se trata aqui de abrir mão da indústria. Uma indústria importante ajuda muito o país, o desenvolvimento, a qualidade de vida, o salário médio. A gente sabe disso. Trata-se de saber qual é a indústria que nós teremos no futuro, como uma indústria que esteja acoplada, por exemplo, às vantagens comparativas brasileiras no agronegócio. Acho que o Brasil tem todas as condições para desenvolvê-la, desde que tenha acesso a bens importados que possam ser integrados aos produtos nacionais. O agronegócio pode ser um campo fértil para o desenvolvimento industrial. O que não podemos ficar é com uma indústria velha. Quem é que quer subsidiar indústria velha? A gente tem uma proteção de mercado que não é do interesse da população, que permeia a economia, seja por tarifa, seja por conteúdo local, seja por vários mecanismos não tarifários.

Normalmente, quando se fala em abertura, a gente pensa no setor industrial, mas tem também o setor de serviços, que no Brasil também é muito fechado. Como o sr. vê a abertura em relação ao setor de serviços?

É fundamental, porque a gente tem hoje dificuldade nas empresas de comprar tecnologia, que é superimportante para você fazer uma indústria moderna, um negócio moderno, porque tem impedimentos e porque é muito caro. Pagar royalties no Brasil é muito caro. A gente iria contaminar positivamente o nosso parque industrial com fornecedores de serviços de nível global, para baixar o custo efetivamente em transporte, engenharia, setor financeiro, vários setores. A gente poderia tirar proveito de uma competição maior e incentivar uma abertura maior. Não há justificativa para dizer que, com isso, a gente perderia empregos, porque normalmente os serviços são locais.

Tudo isso que a gente está falando se insere no contexto nacional mas também no contexto internacional. No momento a gente vive numa fase de refluxo de aberturas e de maior protecionismo, como no caso dos Estados Unidos e de outros países. Dá para a gente ir na contramão?

É por essa razão que eu acho que a gente deveria dominar a agenda da abertura e não postergá-la mais. O Brasil está muito atrasado nisso. Estamos ainda com proteções altíssimas, muito distantes do padrão internacional. Por outro lado, isso mostra que a gente tem um espaço para evoluir, que depende da nossa agenda. A gente tem tarifas altas, proteção alta, conteúdo local e poucos acordos comerciais. Temos que agilizar essa estratégia, temos que integrar mais a América Latina, temos que verificar o quanto o Mercosul vai nos ajudar nessa agenda ou se vai criar novos obstáculos para atrasar a agenda, mas há novos acordos para fazer, como com os Estados Unidos. Enfim, há uma agenda que precisa andar rapidamente, apesar de o cenário global não ajudar. A gente pode tirar proveito daquilo que tem vantagens comparativas. Na hora que pega a cadeia do agronegócio e estende mais essa cadeia pode ter uma posição mais relevante. Hoje, muito do que a gente exporta é tratado/processado fora do País. Então a gente pode se integrar melhor.

Fonte: O Estado de S.Paulo, 27/11/2019

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