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Não é razoável esperar uma plena normalização da atividade sem a superação da pandemia

Uma avaliação recorrente sobre a crise de 2020 é que se trata, por sua rapidez, amplitude geográfica e intensidade, de um evento único na experiência econômica de quase todos os países. Uma das características da pandemia, e da resultante adoção de nossas agências estatísticas, que seguem fazendo o melhor possível em circunstâncias extraordinárias, mas simples consequência da necessidade da limitação da circulação de pessoas enquanto a pandemia não for superada.

A própria velocidade da crise faz com que os indicadores tradicionais de atividade econômica, compilados em frequência mensal ou trimestral, percam certa relevância, dada a falta de tempestividade, para o monitoramento da conjuntura.

Recessão pode ser um pouco mais moderada do que o atual consenso de mercado e ficar entre -4% e -5%

O uso dos chamados “dados alternativos”, como informações sobre geolocalização, padrões de gastos, tráfego de pessoas, imagens de satélites etc., que tem sido uma das características mais notáveis da atividade de Research sobre empresas nos últimos anos, pode, em consequência desta crise, ganhar maior relevância no arcabouço analítico dos macroeconomistas, sejam em instituições privadas ou públicas.

Essa tendência tem sido viabilizada pelo desenvolvimento da capacidade de processamento de conjuntos cada vez maiores de dados e informações não estruturadas. No Itaú, para lidar com os problemas citados acima, construímos um indicador diário de atividade econômica para o Brasil, chamado Idat, composto por informações agregadas sobre gastos em cartões de crédito no consumo de bens e serviços, bem como o consumo de energia – trata-se, portanto, de um híbrido, que inclui tanto dados “alternativos” quanto tradicionais. Esse índice, por construção, estava no patamar de 100 na primeira quinzena de março, pré-covid. Com o choque, o Idat caiu para cerca de 55 no pior momento (dia 28 de março) e vem mostrando recuperação desde então: a média de março foi 86, já refletindo os efeitos da pandemia na segunda metade do mês; o indicador então caiu para 66 em abril, subiu para 73 em maio e atingiu 82 em junho.

Essa recuperação tem se mostrado gradual, como ilustram os números acima, e não linear. Além disso, tem sido altamente heterogênea. Considerando o gasto com bens de consumo, o setor de supermercados estava no patamar 88, na última observação, similar ao gasto em farmácias (87), enquanto a compra de bens duráveis ainda estava em 74. Já no segmento de serviços, o quadro é bem mais negativo: gastos em restaurantes estavam em 52 ao final de junho (incluindo delivery), mas despesas em lazer (cinema/teatro) estavam apenas em 23 e viagens e turismo em 27 – sempre considerando 100 como o nível de referência da primeira quinzena de março.

A recuperação tem coincidido com o relaxamento gradual do distanciamento social efetivamente observado. Indicadores de isolamento social, baseados na movimentação de telefones celulares, tiveram auge no final de março, não coincidentemente, junto com o piso da atividade econômica. Desde então, ainda que de forma não monotônica, os indicadores de distanciamento social, vêm recuando. Evidências dos EUA, mas que também devem ser informativas sobre o Brasil, indicam que o comportamento espontâneo do público pode ter efeito bem mais importante sobre as variações na circulação de pessoas e o distanciamento social do que as medidas impostas pelos governos.

Dessa forma, caso a população das grandes áreas metropolitanas volte a ter o mesmo grau de cautela observado em março/abril, é provável que o distanciamento volte a aumentar, ainda que de forma voluntária, com efeitos sobre a economia. Logo, não é razoável esperar uma plena normalização da circulação de pessoas e atividade sem a superação da pandemia.

O Idat oferece uma leitura em alta frequência da atividade econômica, com uma correlação com outros indicadores de menor frequência, como o PIB, apurado trimestralmente. Este caiu 1,5% no primeiro trimestre, ante o anterior, e deve ter atingido o piso no segundo trimestre. Considerando apenas os indicadores já divulgados até esse momento (cerca de 40% do total), nosso monitoramento para o PIB do segundo trimestre aponta contração de cerca de 8,5%, ante o primeiro (em nossos modelos, estimamos atualmente uma contração um tanto maior, entre 10 e 11%).

Caso essa contração menos intensa se confirme, a recessão de 2020 pode acabar também sendo um pouco mais moderada do que o atual consenso de mercado (ficando entre -4% e -5%, contra a expectativa de queda de 6,5% no ano). Isso depende, entre outros fatores, de um não recrudescimento da pandemia no segundo semestre do ano.

Quando monitoramos outras economias em alta frequência, também temos lançado mão de indicadores alternativos. Construímos índices diários para EUA, a área do euro, e a China. Para a economia americana, o indicador diário inclui informações sobre variáveis como pedidos de financiamento imobiliário, dados de faturamento de cinema, reservas em restaurantes, entre outros. Reservas em restaurantes e indicadores de mobilidade estão entre os dados alternativos utilizados para monitorar a atividade na área do euro, enquanto para a China informações sobre atividade portuária, bem como poluição do ar, são utilizados.

É cedo para dizer que tipo de inovação teórica essa crise trará para a análise econômica. Mas, no que se refere ao acompanhamento da conjuntura, que é parte tão importante da atividade dos macroeconomistas aplicados, a revolução dos dados alternativos, que já tinha começado, deverá ganhar impulso considerável, gerando oportunidades, bem como desafios de interpretação.

Fonte: Valor Econômico

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita