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Exageros no auxílio emergencial?

Naércio Menezes, Valor Econômico

Praticamente dois terços dos valores do auxílio foram gastos com famílias que não eram pobres

A pandemia de Covid-19 é um daqueles raros episódios que marcam uma geração e que será lembrado para sempre. Segundo dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), tivemos 163 mil mortes por causas naturais a mais do seria esperado até agora, que representam um aumento de 23% no total de óbitos no país ligados à covid. Para atenuar os efeitos da pandemia, o Congresso aprovou e o governo implementou rapidamente o programa de auxílio emergencial. Mas o montante gasto no programa e suas consequências vêm provocando debates. Houve exageros na concessão desse auxílio? Será que o programa atenuou a queda do PIB e a destruição de empregos? O que acontecerá com o fim do auxílio emergencial?

A tabela ao lado combina dados da Pnad-Contínua e da Pnad-Covid para acompanhar as mesmas famílias entre o 1º trimestre de 2019 e julho de 2020. Os dados mostram que 61% das famílias que receberam o auxílio emergencial não eram pobres em 2019 nem em 2020, mesmo sem o auxílio. Além disso, 7% das famílias que receberam o auxílio eram pobres em 2019, mas já tinham deixado a pobreza em 2020. Esses dois grupos receberam 64% dos valores gastos com o programa, o que significa que praticamente 2/3 dos valores do auxílio emergencial foram gastos com famílias que não eram pobres.

Praticamente dois terços dos valores do auxílio foram gastos com famílias que não eram pobres

Isso mostra que realmente houve exagero nos gastos e que é preciso muito cuidado na hora de planejar grandes programas de transferência de renda. A maior parte dos problemas de focalização do programa decorre do limite muito elevado de renda que foi estabelecido pelo governo para tornar as famílias elegíveis para receberem as transferências. Para ter direito ao benefício, a família precisa ter uma renda familiar per capita abaixo de R$ 522 ou uma renda familiar total inferior a R$ 3.135. Porém, a linha que define a pobreza no Brasil hoje em dia gira em torno de R$ 290, ou seja, é bem menor do que o limite máximo do programa. E somente 35% das famílias brasileiras tem renda acima de R$ 3.135.

Assim, houve um erro na hora de estabelecer os critérios de elegibilidade do programa. Além disso, 17% das pessoas que recebem as transferências hoje em dia não deveriam ter acesso ao programa mesmo segundo os próprios critérios de elegibilidade estabelecidos pelo governo.

Mas a tabela também mostra que 19% dos domicílios que receberam as transferências realmente precisavam delas, pois seus membros perderam o emprego e sem o auxílio ficariam pobres. O programa fez com que a pobreza nesse grupo se reduzisse bastante, pois com o auxílio somente 4% dos que não eram pobres em 2019 entraram na pobreza em 2020. O último grupo de pessoas que recebeu o auxílio é composto pelos que já eram pobres antes da pandemia e permaneceriam na pobreza hoje em dia, não fosse o auxílio. Esse grupo forma 13% dos beneficiários. Depois das transferências, a proporção de pessoas nesse grupo caiu para apenas 4%.

Transferir renda para esse último grupo de beneficiários faz todo sentido, especialmente para as famílias com mulheres grávidas ou com crianças, mesmo que esse não tenha sido o objetivo inicial do programa. Vários estudos mostram que crianças que nascem e crescem na pobreza podem ter problemas de desenvolvimento infantil que, por sua vez, provocam abandono escolar e dependência de recursos públicos para sempre.

E muitos outros estudos mostram que choques de renda ou estresse durante a gravidez podem provocar partos prematuros que geram crianças com baixo peso e problemas emocionais futuros. Muitas dessas famílias não recebiam nenhuma transferência do Estado e outras tantas recebiam apenas cerca de R$ 150 do programa bolsa família, insuficientes para um bom desenvolvimento infantil.

O programa de auxílio emergencial também deixou ainda mais claro (para quem ainda tinha alguma dúvida) que transferências de renda aumentam o consumo e preservam empregos. Vários artigos mostram que transferências de renda para os municípios aumentam a renda local em quase duas vezes o valor original devido aos efeitos multiplicadores.

Transferências para as famílias mais pobres, por sua vez, aumentam o PIB per capita local em até 4 vezes o valor per capita transferido e também aumentam a arrecadação de impostos, ou seja, parte do dinheiro gasto volta para o governo.

Ou seja, quanto mais direcionados para os pobres, maior é o efeito das transferências na economia local, pois essas famílias não poupam. Porém, dessa vez o valor transferido foi tão grande, repentino e para tantas famílias que a oferta não conseguiu reagir rapidamente ao aumento da demanda, provocando grande aumentos de preços no varejo e na construção civil. Impressionante como R$ 600 mensais fazem diferença para o consumo e bem-estar das famílias pobres.

Este trecho é Assim, é importante implementarmos um novo programa permanente de transferência de renda a partir do programa Bolsa Família, que priorize as famílias mais pobres com crianças. Isso evitaria o surgimento de um novo tipo de ciclo político, em que os políticos usariam os aplicativos para transferir renda para a população brasileira em anos de eleição a fim de aumentar sua popularidade, deixando o rombo fiscal para o ano seguinte. Essa tentação é grande demais e precisa ser contida.

O fim do auxílio emergencial em dezembro fará com que cerca de 25% das famílias que recebem o benefício voltem à situação de pobreza, o que seria inaceitável. O fim das transferências e a alta taxa de isolamento social que ainda persiste não permitirão que todas essas famílias encontrem trabalho, o que fará com que a taxa de desemprego se aproxime de 20% no início do ano que vem.

Além disso, a curva de excesso de óbitos produzida pelo Conass imbicou para cima novamente, sugerindo a aproximação de uma segunda onda, que fará o isolamento social aumentar ainda mais. Sem contar que parte dos empregos perdidos com a pandemia não voltarão nunca mais. Assim, é imprescindível que tenhamos um novo programa permanente de transferências de renda focalizado nas crianças mais pobres.

Link da publicação:

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/exageros-no-auxilio-emergencial.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho