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Controles públicos precisam de limites

O GLOBO

Nesta semana, a imprensa noticiou que deputados de oposição iriam acionar o Tribunal de Contas da União (TCU) contra o Ministério da Saúde, que estaria pressionando autoridades de Manaus a usar cloroquina e ivermectina.

De fato, há autoridades federais agindo de modo estranho. Mas será que controladores de contas podem interferir na prescrição de tratamentos médicos?
Uma das pautas que avançou no Brasil das últimas décadas foi a instituição de controles de legalidade sobre agentes públicos, e também sobre particulares que lidam com o Estado. Em tese, tudo positivo.

Mas decisões, processos e procedimentos de controle são cada vez mais comuns, extensos e com mais interferências sobre a ação legislativa ou administrativa. Um exemplo: sem qualquer fundamento jurídico, ministros do STF dão liminares para liberar os estados de honrar débitos com a União.

Durante a pandemia, conflitos sobre isolamento social, seringas, vacinas, data do Enem etc. têm sido levados todos os dias aos juízes e outros controladores. Nem sempre com debates de legalidade, o que é um desvio.

Não faz sentido que os controles públicos tragam para si questões não jurídicas. Existe sociedade no Brasil. E o normal é que a solução de seus dilemas seja buscada no campo da política e da gestão pública.

Porém, parte significativa da opinião pública tende a acreditar que a intromissão dos controladores sempre vale a pena. Fazem sucesso os juízes, membros do Ministério Público, defensores, policiais e controladores de contas que sejam mais críticos, exigentes, desconfiados, ousados, que agem mais rápido e com menos receio de ultrapassar competências legais.

Controladores guerreiros estão na moda. Controladores comedidos e legalistas, nem tanto.

Há quem creia que, nestes tempos de políticos e gestores demagogos, negacionistas e mesmo golpistas, só a ousadia de controladores públicos mais corajosos do que legalistas poderá proteger a saúde da população, os cofres públicos, a democracia e outros valores. A aposta é perigosa.

O presidente do STF, aqui no GLOBO (10 de janeiro, pag. 3), depois de afirmar que a Corte é “guardiã da democracia constitucional”, encerrou seu artigo com frase forte, algo ambígua: “Preservaremos a democracia a qualquer custo”.

Com controladores públicos bem intencionados, “qualquer custo” institucional é barato? Pesquisadores de diversas áreas estão atentos. E procuram entender as razões desses movimentos, testar seus fundamentos e medir resultados.

Não há democracia sem Estado de Direito. Por isso, a academia jurídica tem esta preocupação: a integridade e estabilidade da ordem jurídica. Para mantê-la, controles públicos devem resistir a seus próprios individualismos, seguindo com convicção os limites normativos. Quando o mundo jurídico é caótico e imprevisível, a máquina pública se enreda nos impasses e conflitos entre políticos, gestores e controladores. Aí perde o equilíbrio e a produtividade.

Análises do Observatório do TCU, um projeto da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público, têm apurado inconsistências e problemas da visão expansiva que, sem apoio em regras legais claras, o controle de contas vem adotando quanto a seus poderes. Livro recém-lançado traz um balanço a respeito (TCU no Direito e na Realidade, Sundfeld e Rosilho, coord., editora Almedina, 2020).

Em seu estudo, o pesquisador Gustavo Maia Pereira apurou que o TCU, em postura nada legalista, usa princípios muito vagos (como o “princípio do interesse público”) para interferir na modelagem de contratos de concessão de infraestrutura e dar ordens às agências reguladoras, em aspectos que não têm a ver com controle de contas.

Com isso, o tribunal compromete a autonomia das agências, enfraquece a regulação e, sem capacidades e procedimentos adequados, atrai para sua órbita as incertezas e guerras de interesses de políticos, investidores, regulados e consumidores. A valer essa tendência de o controle de contas interferir na regulação, um dia os diretores do Banco Central irão aos ministros do TCU para discutir taxas de juros.

Será que controladores de contas pouco legalistas se saem bem como gestores improvisados? No mesmo livro, André de Castro Braga mostrou que, mesmo sem indícios de problemas concretos, o TCU pode passar 10 anos colocando em dúvida a legitimidade de inovações que buscam melhorar a eficiência administrativa (na manutenção de veículos da frota, por exemplo). Na prática diária do controle, e por conta de desconfianças de princípio, acaba por enviar sinais negativos a todos que inovam.

Há boas razões para os controladores levarem a sério a integridade e estabilidade da ordem jurídica, de que a divisão legal de competências públicas é peça essencial. O Estado de Direito depende disso.

É verdade que políticos e gestores podem ter iniciativas ruins ou mesmo perigosas. Mas são problemas a resolver nas arenas da política e da gestão pública, com aprendizados institucionais progressivos. Controladores públicos não têm autorização constitucional e legal, tampouco capacidades específicas, para lutar nessas arenas, com as armas que são próprias delas. Limites jurídicos importam.

Controladores legalistas e comedidos, que se dedicam com seriedade a suas tarefas específicas, talvez não tenham o charme dos heróis. Mas têm o valor das pessoas comuns que cumprem bem sua missão. São elas que mudam e protegem o mundo.

Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-controles-publicos-precisam-de-limites.html

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld