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Pastore: ‘Dose de alta da taxa foi excessiva e poderia ter ido mais devagar’

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Valor: A decisão de subir os juros foi correta?

Affonso Celso Pastore: Não tem nenhuma controvérsia quanto ao fato de que tinha que iniciar uma normalização monetária. A taxa Selic, em termos reais, estava negativa. Você tinha, no fundo, um estímulo excessivo vindo da política monetária. O fato de a economia estar ainda deprimida não tem uma relação direta com política monetária. Tem uma relação direta com a pandemia. Nós estávamos até outro dia com um ‘forward guidance’, que dizia que a taxa de juros ficaria baixa por um extenso período. Tem uma reunião, você tira o forward guidance e na seguinte você dá 150 pontos-base [com duas altas de 75 pontos-base, uma agora e outra sinalizada para maio]. No mínimo precisa de uma explicação mais detalhada sobre o que mudou entre a retirada da forward guidance e a decisão.

“Economia estar deprimida não tem relação direta com política monetária; tem relação direta com pandemia”

Valor: E haveria uma justificativa para esta decisão?

Pastore: Todo o BC, quando decide a taxa de juros, usa uma função de perdas. Desculpa falar isso tecnicamente, mas é a forma como o economista faz. Você pega a distância da inflação para a meta e eleva ao quadrado e dá um peso alfa. Pega a distância do PIB atual para o PIB potencial, eleva ao quadrado e dá um peso 1 menos alfa. Quanto mais distante você tiver da meta, maior a perda. Quanto mais distante o PIB atual estiver do PIB potencial, maior a perda. Você tem que encontrar uma trajetória de subida de juros que minimize a soma das duas perdas. Você olha se a economia já está deprimida, no sentido de que está abaixo do potencial. E olha se a inflação não está profundamente desancorada, como [de fato] não está. Se você olhar para as expectativas, por mais que você critique as expectativas da [pesquisa] Focus, que são defasadas, elas não estão desancoradas. Você vê um índice de difusão relativamente alto. Mas vê uma concentração em cima de bens ‘tradables’, que no fundo sofreram impacto de câmbio. Não há uma desancoragem que justifique uma perda de PIB muito alta para acelerar a subida [de juros]. Numa circunstância como essa, em teoria, é melhor você subir mais devagar. Você vai trazendo a inflação mais lentamente para a meta e perde menos em termos do desvio do Produto atual para o PIB potencial.

Valor: O que justificaria uma subida de juros como essa?

Pastore: A primeira é a hipótese de que isso valorizaria o câmbio. E, ao valorizar o câmbio, tiraria a pressão daquela componente que vem dos bens tradables. Eu discordo dessa visão. No passado, quando o país tinha risco fiscal baixo, tinha grau de investimento, quando os juros eram mais altos, você subia a taxa de juros e estimulava capitais a virem para o Brasil. O mundo está líquido porque os Estados Unidos fizeram uma enorme expansão monetária. Aquela liquidez sai dos Estados Unidos, enfraquece o dólar, como enfraqueceu, vai para todos os países, e o Brasil, dentre todos os países, era um país que tinha uma certa preferência. Porque tinha um risco baixo e tinha um diferencial de taxa de juros mais alto. Hoje em dia o Brasil é um país de risco fiscal muito alto relativamente aos emergentes. Tivemos um anúncio de mais 150 pontos-base [de alta de juros], e [ontem] eu não vi uma valorização do real que, no fundo, fosse indicativa de que temos uma grande capacidade de atrair capitais.

Valor: Seria alta de juros para atuar na inflação via câmbio?

Pastore: Eu não quero cometer uma injustiça, evidentemente. O BC vai soltar a ata e o Relatório de Inflação. O BC vai, certamente, elaborar em cima das razões que os levaram a essa decisão de fazer um ajuste ‘frontloaded’. Mas, se a razão é a expectativa de que haja uma valorização do real, eu acho que a dose foi excessiva, não precisava disso tudo, podia ter ido mais devagar. Isso não vai fazer uma enorme diferença. A única coisa que isso faz é causar uma certa confusão. Há duas cabeças. Há uma cabeça de economista que raciocina desse jeito como eu disse. Ele olha para a função de perdas, ele olha para a trajetória ótima, nem sempre ele consegue acertar, porque nem sempre tem um bom diagnóstico. Mas é uma cabeça que, no fundo, procura otimizar, dentro das restrições, [ter] o melhor possível. Tem uma segunda cabeça, que é a cabeça dos traders, que é o sujeito que quer logo resolver tudo muito depressa. Eu conheço alguns economistas que pensam como traders. Isso não tem nada de mal. Ele, no fundo, reage muito rapidamente. Esse tipo de decisão, dessa forma, acho que agradou os traders. Não é o estilo de pensar de um economista. Não estou dizendo que eles não sejam bons economistas. Se você perguntar para os traders no mercado, eles vão gostar da decisão. É compatível com a cabeça deles. Não é uma coisa que tenha tirado fora dos trilhos a condução da política econômica, a decisão de subir a taxa de juros estava correta. Qualquer coisa que julgue depois, que eventualmente se prove que tenha sido excessivo, pode ser corrigido. Nada disso é fatal. Mas eu, realmente, se estivesse lá – nem cogitaria ocupar a posição de nenhum deles -, preferiria uma subida mais gradual, eu acho que uma subida de 50 pontos faria perfeitamente o trabalho que tem que fazer.

Valor: Mas o BC não apresenta sua justificativa para retirar os estímulos extraordinários injetados na pandemia, quando disse que a economia já reagiu e a inflação subiu?

Pastore: Com a relação ao fato e a recuperação ter sido em V, não sou analfabeto, nem você, nem eles. Nós vimos que ela foi em V. Agora, vou citar um economista que não é monetário, o Ricardo Paes de Barros, especialista no campo de distribuição de renda. Claro, 5% do PIB de transferência de renda fez a recuperação do consumo ser em V. Não tem dúvida sobre isso. Só que, diz o Ricardo, tivemos um aumento do número de desempregados de 10 milhões. Aquele V não é a velocidade de cruzeiro da economia. Estamos com uma pandemia, com um número de mortes em 2 mil por dia e subindo. Essa economia tem que sofrer contração, ela não está crescendo como está implícito nessa afirmação. A não ser que façamos a hipótese de que ela vai continuar crescendo daquele jeito. Mas só que, me desculpa, o estímulo que foi usado lá atrás, que foi excessivo e foi errado no plano fiscal e que é responsável por esse prêmio de risco grandão, que está na curva e está no câmbio, esse estímulo não tem mais.

Valor: E sobre a justificativa do Banco Central de que a alta é necessária para reduzir o risco de desancorar as expectativas de inflação de longo prazo?

Pastore: Certo, o comunicado está dizendo que precisa de uma dosagem maior. Esse ‘statement’ precisa de uma comprovação empírica. A afirmação não faz a ciência, quem faz a ciência é a comprovação empírica. Acho que deram um peso, na função de perdas deles, maior para o desvio da inflação da meta do que para o PIB atual e do PIB potencial. Talvez eu esteja errado, não quero dizer que sou dos bons, que estou sempre certo. Costumo não ser arrogante nas minhas colocações. Costumo justificar o porquê. Acho que há uma ideia de que a economia tem uma velocidade de recuperação maior, que é uma ideia errada. Porque ela vem daquele estímulo excessivo fiscal do ano passado, que acabou. E na economia, se existe algo hoje em dia, é o risco de o primeiro e o segundo trimestre deste ano estarem para baixo, não para cima.

Link da publicação: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/03/19/dose-de-alta-da-taxa-foi-excessiva-e-poderia-ter-ido-mais-devagar.ghtml

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