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Bases para um novo regime fiscal

Folha (publicado em 26/12/2021)

Meu tema hoje é o “regime fiscal”, ou seja, o conjunto de princípios e regras que norteiam a gestão da política fiscal. Enquanto vigorou a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000, o regime brasileiro funcionou razoavelmente bem. Infelizmente a LRF não pegou —foi atropelada em 2014 e faleceu.

A saúde fiscal do país segue frágil desde então. Embora meritória, a breve tentativa de substituir a LRF por um teto para o crescimento dos gastos fez água recentemente. A combinação de déficits fiscais recorrentes e dívida pública elevada representa uma grave fonte de risco, que pressiona os juros e inibe o crescimento do país.

Apresento a seguir elementos para a construção de um novo regime fiscal para o Brasil, com foco nos aspectos macroeconômicos. Começo com uma breve revisão de conceitos.

Quando os gastos superam as receitas, o governo é obrigado a tomar emprestado (do setor privado ou de financiadores externos) para cobrir a diferença (o déficit). A capacidade de um governo se endividar é finita e depende da taxa de juros que seus credores demandam para não optar por outros usos de seus recursos, tais como investir em outros ativos, consumir ou tirar o dinheiro do país.

Tudo mais constante, quanto maior o endividamento, mais altos os juros que o governo paga. A capacidade de endividamento de um país depende também do tamanho de sua economia e de seu crescimento. Um país que cresce pode se endividar mais do que um que não cresce, pois terá mais recursos no futuro para honrar a dívida (e, portanto, mais facilidade em rolar a dívida).

Déficit primário é o que se obtém quando se exclui do déficit público o gasto com o pagamento de juros. É a variável que o Tesouro controla. Na análise dos temas fiscais é natural olhar os dados como proporção do PIB do país. O crescimento da dívida como proporção do PIB depende do crescimento do numerador (déficit público) e do denominador (o PIB). Por exemplo: com equilíbrio primário, a dívida como proporção do PIB crescerá se a taxa de juros real for maior do que a taxa de crescimento do PIB. Com déficit primário, crescerá mais ainda.

Podemos agora listar quatro pilares básicos para o regime fiscal brasileiro (variáveis sempre como proporção do PIB).

1. A dívida pública deve ser de tamanho tal que, em caso de necessidade, como uma recessão ou pandemia, seja possível financiar sem dificuldade uma política de expansão fiscal.

2. O resultado primário deve ser tal que, em épocas normais, a dívida pública se mantenha estável no nível desejado.

3. O resultado primário deve ser recalibrado de forma a fazer a dívida voltar gradualmente ao nível desejado após expansões fiscais. Ou seja: após um período expansionista, a política fiscal deve passar a ser contracionista.

4. Os prazos dos vencimentos da dívida devem ser longos, sem concentração no curto prazo. Assim reduz-se a probabilidade de crises financeiras e cambiais causadas por contrações na oferta de financiamento.

A definição das metas 1 e 2 é bastante subjetiva, pois depende de uma ampla gama de fatores, de natureza econômica, política e histórica. A taxa de juros que o governo paga aos seus credores e o prazo médio de sua dívida são bons indicadores. Nesse contexto de incerteza, me parece claro que função de reação implícita no terceiro pilar é o aspecto mais relevante do regime. Ela é crucial para a estabilidade macroeconômica.

As metas para o primário e a dívida devem ser revistas periodicamente (a cada cinco anos, ou mais). Países institucionalmente estáveis, com um bom histórico econômico, tipicamente se financiam a juros baixos e prazos longos. Podem, portanto, conviver com dívidas maiores e mais folga no primário. Claramente não é o nosso caso.

Tem sido a nossa sina ter que cortar gastos e aumentar juros e impostos em momentos de dificuldade, ao invés de praticar uma política expansionista, portanto anticíclica. A razão é simples: a oferta de crédito para o governo costuma secar na hora do sufoco. Isso em função da ausência de um regime fiscal robusto e de nossa história de moratórias, crises e inflações, que não inspiram confiança.

O quadro atual é mais uma vez perigoso. O saldo primário está negativo há anos. O crescimento anda baixo há décadas e os juros, altos. Nesse contexto, uma dívida de 80% do PIB é alta. A leitura diária dos jornais não deixa dúvida: o regime fiscal que tínhamos foi sendo mutilado e esfarelou-se. Estamos diante de uma armadilha. Voluntarismo com a taxa de juros é uma receita suicida, bem sabemos. Não deve causar surpresa que o custo de financiamento do governo ande nas nuvens. Para dez anos, está cerca de 6 pontos percentuais ao ano acima do americano em termos reais, e 9 pontos acima para títulos não indexados à inflação. Não é um quadro sustentável.

Tenho discutido neste espaço as oportunidades disponíveis para implantação de um novo regime fiscal baseado nos princípios acima. Não seria fácil, mas o impacto seria surpreendente e se faria sentir rapidamente. Em conjunto com outras reformas viabilizaria um longo ciclo de desenvolvimento como há muito não experimentamos no Brasil. De qualquer forma, sem um regime fiscal robusto estamos mesmo é fadados a ver a economia piorar ainda mais.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2021/12/bases-para-um-novo-regime-fiscal.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Arminio Fraga