Resumos

Da inflação crônica à deflação crônica: os BCs sem mapas

Palestrante: André Lara Resende

Nota: O debate foi centrado na apresentação da evolução do entendimento na teoria econômica acerca do papel desempenhado pela moeda. A evolução foi apresentada em termos dos modelos, autores e correntes de pensamento a respeito do tempo. Até o momento a teoria econômica não foi capaz de apresentar uma solução definitiva que incorpore os agregados monetários nos modelos, sem a introdução de hipóteses ad-hoc. A apresentação foi seguida por uma discussão a respeito da eficácia da política monetária, do papel dos bancos centrais no contexto de integração e internacionalização do mercado financeiro e a respeito de para onde está evoluindo o pensamento econômico no sentido de incorporar o mercado financeiro nos modelos econômicos.

Resumo: A Teoria Quantitativa da Moeda prevaleceu no debate econômico por quase 70 anos, mesmo tendo pouca ou nenhuma evidência que a suportasse. A evolução do pensamento econômico demonstra que, usando o modelo de referência de Equilíbrio Geral de Walras-Arrow-Debreu, não há necessidade para moeda. Diversas tentativas foram feitas para reintroduzir a moeda no modelo. Woodford e Cochrane mostram que sob expectativas racionais há infinitas relações M/P que são compatíveis com o equilíbrio. Calvo, por outro caminho, argumenta que o papel da moeda se dá de maneira inversa ao que sempre esteve colocado: é a moeda que é ancorada pelos preços e não os preços que ancoram a moeda. À medida que os preços são inflexíveis por um período relevante de tempo, a moeda como unidade de conta dá aos agentes econômicos a possibilidade de determinar preços relativos em torno de uma base comum – daí, então, a explicação para o valor da moeda em um mundo que tem fricções, inércia e o problema de maximização é intertemporal. Ainda não há uma solução completamente satisfatória para introdução do mercado financeiro.

  • Dominância da Teoria Monetária
    • O aumento do nível de preços na Europa a partir do século XVI que coincidiu com a entrada de ouro proveniente do Novo Mundo gerou a crença de que haveria uma proporcionalidade entre o estoque de ouro e a renda nominal;
    • Essas intuição foi organizada por David Hume e outros, mas apenas na década de 1920, Irving Fisher introduziu a equação quantitativa da moeda, segundo a qual o estoque de moeda é proporcional ao valor das transações num período de tempo.
      1. Essa relação é dificil de justificar no mundo contemporâneo. Qual é a unidade de contas fiduciárias? E os mecanismos de liquidação e custódia?
    • A equação quantitativa da moeda de Irving Fisher é uma identidade. Ela se tornou referencial quando Keynes a usou na Teoria Geral, com uma modificação que tornou a velocidade de circulação da moeda, como uma função da taxa de juros. Keynes não apenas legitimou, como deu uma sustentação teórica ao convertê-la de uma simples identidade em uma teoria de demanda por moeda.
    • A controvérsia entre os monetaristas e os keynesianos era essencialmente sobre se o controle da quantidade de moeda afetava ou não a renda real, mas era amplamente aceito que a quantidade de moeda determinava o nível de preços.
    • Mesmos economistas insuspeitos de serem apontados como monetaristas, como Dornbusch e Fisher, concluem em seu livro que “a inflação é sempre e em qualquer lugar um fenômeno monetário”.
  • Problemas da Teoria Quantativa da Moeda
    • A TQM não encontra evidências empíricas e só se sustenta no postulado de que no longo prazo existe uma correlação entre o nível geral de preços e o agregado monetário, o que não é uma conclusão muito útil.
    • O modelo de Equilíbrio Geral de Walras-Arrow-Debreu, que é a referência para economia contemporânea, com todas suas hipóteses de mercado perfeito, mercados contingentes, informação perfeita e instantânea, chega à conclusão de que não existe um espaço para moeda, apenas para preços relativos. Uma vez determinados os preços relativos de equilíbrio, a moeda é apenas um fator exógeno para determinar os preços nominais.
    • Uma série de hipóteses foram testadas na direção de reintroduzir o papel da moeda no modelo de Equilíbrio Geral de Walras-Arrow-Debreu, como inserir a moeda na própria função utilidade, assumiu-se formas de pagamento antecipado, mas nenhum dos recursos tentados foi capaz de resolver o problema colocado por Hahn (1965):
      1. Por que não prevalece um equilíbrio de escambo em que não há uma demanda por moeda?
    • Ainda que se aceite que o nível de preços seja determinado pela moeda, existe uma infinidade de relações M/P que são compatíveis com o equilíbrio, portanto, só é possível determinar o nível geral de preços e a taxa de inflação, com a suposição de que o estoque de moeda é exógeno e determinado pelo banco central.
  • Papel do Banco Central
    • A suposição de que o nível geral de preços e, portanto, a inflação é determinada pelo estoque de moeda é controlado pelo banco central, instruiu toda a política monetária no século XX;
    • A hipótese de que o Banco Central controla o estoque de moeda também não é verdadeira. O banco central contra a taxa de juros;
      1. Definindo o estoque de moeda como o agregado monetário mais básico: papel moeda em poder do público mais reservas bancárias, e considerando que o papel moeda em poder do público é um componente menos relevante.
      2. O banco central não controla as reservas bancárias, existe um mercado para reservas bancárias. O mercado de reservas bancárias tem uma característica muito específica, em que ele só equilibra com atuação do banco central no final do dia.
  • Se houve um evento exógeneo, por exemplo, de entrada de moeda estrangeira e o banco central emitiu moeda, há um excesso de reservas no final do dia. Se o banco central não esterelizar o mercado, a taxa de juros no mercado de reservas vai para zero. Por outro lado, se houver uma saída de recursos do país, se o banco central não fizer emissão de moeda, a taxa de juros no mercado de reservas iria para o infinito.
  1. Se o banco central quiser evitar grandes flutuações na taxa de juros, o papel do banco central é atuar suprindo ou esterilizando o mercado de reservas para garantir a estabilidade da taxa de juros.
  • Taxa de Juros, Estoque de Moeda e Nível de Preços
    • Em 2003, em seu livro, Woodford retoma a abordagem do economista sueco, Knut Wicksell, que discutia macroeconomia em termos de desvios da taxa de juros, em relação ao seu nível “natural”.
    • Woodford propõe construir um modelo com base apenas na taxa de juros, assumindo que existe uma relação entre estoque de moeda e taxa de juros, sendo que o controle da taxa de juros é de fato como o banco central opera. A opção pela construção do modelo em torno da taxa de juros é inicialmente justificada pela existência de uma relação biunívoca entre trajetória da taxa de juros e a evolução do estoque de moeda;
    • O próprio Woodford conclui mais tarde, que sob expectativas racionais, uma política monetária, cuja taxa de juros siga um sistema de metas exogenamente determinadas, permite um “número infinito de possíveis equilíbrios para as variáveis endógenas aos distúrbios reais”.
    • Com isso, a teoria econômica chegou a um impasse: se por um lado as expectativas racionais são irrefutáveis, por outro, sua introdução no modelo neowickselliano leva à indeterminação de uma trajetória única para o nível geral de preços. O impasse é agravado pela conclusão de John H. Cochrane de que “a regra de Taylor, no contexto do modelo neo-keynesiano, leva à mesma indeterminação da inflação que ocorre sob metas fixas de juros”;
  • Modelo Neokeynesiano
    • A medida que as expectativas racionais são um pressuposto chave para o agente racional maximizador, e que sob expectativas racionais, assim como no modelo de referência de Equilíbrio Geral de Walras-Arrow-Debreu, a economia real depende da moeda e da política monetária. A teoria econômica se voltou para os choques reais e ciclos econômicos deixando em aberto o problema do papel da moeda.
    • No final dos anos 80, uma série de trabalhos empíricos apontaram para a importância da política monetária e seus efeitos sobre o desempenho de curto prazo da economia.
    • As evidências empíricas levaram à reintrodução de fricções e atritos, como inflexibilidades de salários, preços e contratos escalonados. Esse caminho, combinado com o esforço para derivar relações macroeconômicas de maneira microfundamentada, levou ao desenvolvimento dos modelos DSGE em substituição ao modelo IS-LM.
    • Os modelos DSGE reproduzem os resultados do modelo original IS-LM de Hicks com a vantagem de incorporarem também as situações limites em que os preços são perfeitamente flexíveis.
    • No modelo IS-LM, por mais primitiva que fosse a ideia do mercado monetário, a LM era um mercado que tinha, via taxa de juros, um efeito sobre a economia real através do investimento, ao mesmo tempo que a taxa de juros afetava a demanda por moeda no mercado monetário, portanto, por mais esquemática que fosse havia uma menção ao mercado financeiro e de moeda.
    • O modelo neokeynesiano suprimiu a moeda e o sistema financeiro:
      1. uma curva de oferta
      2. uma curva de Phillips

O modelo depende apenas de hiatos do produto presente e futuro, ou seja, não tem nenhuma inércia e, a princípio, a autoridade monetária poderia corrigir qualquer processo inflacionário instantaneamente, pela geração de um hiato de produto suficientemente grande.

  • As inflexibilidades no mercado financeiro
    • A teoria keynesiana esteve sempre preocupada em tratar inflexibilidades, por exemplo, a inflexibilidade de salários. Por exemplo, há várias formulações dos motivos pelos quais os salários são inflexíveis para baixo.
    • A inflexibilidade que sempre foi deixada de lado é a dos contratos financeiros que é bastante relevante.
    • Contratos financeiros são inflexíveis e embutem uma expectativa corrente de inflação:
      1. Se a inflação está a 30% ao ano, os contratos financeiros supõem 30% ao ano de inflação mais juros real.
      2. Se a autoridade monetária decide levar a inflação de 30% ao ano para 10% ao ano, há uma transferência de riqueza dos devedores para os credores. Os devedores quebram e isso provoca uma crise bancária.
  • A situação contrária em que a autoridade monetária permite uma inflação maior do que a esperada, transfere renda dos credores para os devedores, como os bancos que não são alavancados não quebram. Por outro lado, existe um fenômeno do encurtamento de prazo e aumento do term premium.
  • Esse é exatamente o conceito de debt deflation de Inving Fisher: em uma economia alavancada, a deflação aumenta o valor real das dívidas e isso é altamente recessivo.
  • A inflexibilidade norminal dos contratos financeiros foi completamente esquecida pela teoria econômica.
  • Emissão de Moeda é Inflacionária?
    • O corolário de que emissão de moeda é inflacionária se perpetuou ao longo do tempo e ainda hoje é difundido, especialmente entre aqueles que não têm formação em economia. Esse corolário é falso.
    • Observando do balanço dos bancos centrais dos países desenvolvidos e sua evolução desde 2007, a intuição levaria a crer que os países passam por um período de alta inflação, quando na realidade o problema é o risco de deflação;
  • Mudança das Funções da Moeda
    • A moeda tem três funções:
      1. Reserva de Valor
      2. Meio de Troca
  • Unidade de Conta
  • O papel da moeda como reserva de valor é questionável à medida que, em se aceitando o risco de liquidez, há uma infinidade de ativos que são melhores do que a moeda como reserva de valor.
  • A evolução da tecnologia de pagamentos com introdução de outras formas (além do papel moeda e moedas alternativas – bitcoin, litcoin – baseados em blockchain) torna o papel da moeda como meio de troca, um anacronismo.
  • Resta como única função relevante para a moeda servir como Unidade de Conta.
  • A Moeda ancora os preços ou os preços ancoram a moeda?
    • Na verdade, são os preços que ancoram a moeda e não a moeda que ancora os preços. A intuição para isso está no cápitulo 17, da Teoria Geral de Keynes, que argumenta que o fato de os salários serem determinados em termos nominais e serem mantidos relativamente estáveis por um período, “inquestionavelmente, é parte da explicação de porque a moeda tem um prêmio de liquidez tão alto”.
    • Essa intuição foi retomada por Calvo (2012), em que argumenta que a estabilidade dos preços nominais é fundalmental para que a moeda possa exercer seu papel (em especial, o de unidade de conta).
    • A estabilidade de preços nominais por um determinado período é a base para que a moeda, em sua função de unidade de conta, possa se traduzir em preços nominais absolutos que tenham relevância e sirvam de base para o cálculo dos preços relativos. Preços nominais estáveis em termos de uma moeda são referência fundamental, especialmente, em um mundo não instantâneo como pressupõe o modelo de Equilíbrio Geral, de Walras-Arrow-Debreu.
    • O Price Theory of Money (PTM) proposto por Calvo inverte a relação entre moeda e preços. A PTM argumenta que preços normais inalterados por determinado período de tempo são a justificativa para a existência de demanda por moeda. São os preços nominais estáveis em termos de uma unidade de conta – a moeda – que conferem a ela funcionalidade, de modo que os preços (temporariamente) inflexíveis ancoram a moeda.
    • Em casos de hiperinflação há destruição da função da moeda como unidade de conta, uma vez que os preços nominais deixam de ser inflexíveis por período relevante de tempo, o que acaba por impedir que os preços denominados em moeda sejam relevantes para comparação de preços relativos.
  • Potência da Política Monetária
    • Quanto mais monetizada é a economia, mais estáveis são os preços e menos poderosa é a política monetária. Justamente porque os preços são estáveis, a ação da política monetária não os afeta tanto.
    • Esse argumento dá uma outra perspectiva para a análise da hipótese de que o mundo desenvolvido pode estar em uma armadilha da liquidez, com subinflação crônica.
    • Ainda que a teoria econômica tenha uma série de gaps em relação ao papel da moeda e sua incorporação nos modelos, é bem possível que a teoria que foi utilizada por quase 70 anos funcione em um ambiente de inflação moderada entre 4% e 8%. Existe confiança fiscal e monetária.

Discussão: 

A discussão foi feita em torno dos seguintes temas:

  • Como a integração do sistema financeiro global torna irrelevante o mercado de reservas para moedas conversíveis?
  • O fato de o banco central determinar uma taxa de juros que é uma referência bastante crível para o resto do mercado não é, no final das contas, uma maneira de perpetuar o papel dos bancos centrais?
  • Qual o estágio de evolução para se chegar a alguma teoria que seja policy oriented, que possa ser usada para fazer previsões úteis?
  • Diante de um desregramento fiscal, a maneira como o mercado, como o governo financia seu déficit, tem alguma influência sobre a inflação?
  • Quais seriam as consequências possíveis para o experimento que está sendo feito pelos bancos centrais em países desenvolvidos, com a manutenção das taxas de juros reais muito baixas ou negativas?
  • O Mercado de Reservas Bancárias
    • Os sistemas de tecnologia permitem aos bancos sensibilizar o caixa em tempo real, para moedas completamente conversíveis – o que não é o caso do BRL – sobra ou falta de caixa. Os bancos podem acessar outras contrapartes e não necessariamente recorrrer ao FedFunds.
    • A idéia de FedFunds ainda tem algum papel de sinalização. Indica qual é o pensamento do Fed, mas o mercado está se tornando irrelevante e transacionando cada vez menos.
    • Os bancos centrais gradualmente estão se tornando irrelevantes, justamente, pela integração financeira, pela tecnologia nos sistemas de pagamentos e liquidações.
    • Os bancos centrais estão afetando o preço de ativos influenciando a estrutura a termo da taxa de juros, através do quantitative easing (QE), que nada tem a ver com os mecanismos originais de transmissão de política monetária.
  • Evolução da Teoria
    • A teoria econômica ainda não apresenta uma alternativa que incorpore e resolva de maneira definitiva os pontos em aberto.
    • Após 2007, pelo menos passou a existir a clareza entre os economistas de que é necessário entender o mercado financeiro e incorporar sua dinâmica nos modelos econômicos.
    • Os esforços no sentido de incorporar o mercado financeiro ainda são bastante incipientes, muitos deles são apenas exercícios de matemática aplicada. 
  • O Financiamento do Governo
    • O entendimento atual é que a taxa de inflação depende da diferença entre o nível de absorção e a oferta agregada. Se o governo decide gastar mais iss, pressiona a inflação pela pressão da demanda agregada, independentemente de como o governo se financia.
    • Contudo, se um governo que não tem credibilidade monetária tentar se financiar emitindo moeda, isso gerará um problema. Por outro lado, um governo com credibilidade fiscal e monetária tem condições de se financiar emitindo moeda sem que gere inflação. 
  • Possíveis consequências das manutenção das taxas de juros muito baixas
    • A expansão da líquidez foi eficaz para se evitar uma depressão no mundo, mas a expansão da líquidez é capaz de fazer com que a economia se recupere.
    • Quando a taxa de juros real fica negativa – ainda que a taxa de equilíbrio tenha caído – cria distorções muito sérias.
    • Cria demanda por todo tipo de ativos que não são reproduzíveis: obras de arte, imóveis em lugares muito especiais, colecionáveis, etc – que sirvam como reserva de valor.
    • Ao mesmo tempo a taxas de juros reais negativas levam à distorção na alocação de ativos com investimentos em projetos que não absolutamente ineficientes.
    • Ainda que a depressão tenha sido evitada, se provocou uma recessão prolongada e, ao mesmo tempo, foram criadas distorções que possivelmente vão se reverter no futuro.

Resumo e Nota preparados por: Renoir Vieira

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