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Caindo na real

Uma das atitudes mais contraproducentes é a de afrouxar o esforço para corrigir uma situação que se afigura como insustentável. Tenho uma reação muito negativa quando ouço que “uma reforma da Previdência mais branda já seria um progresso”, porque “afinal, assim ganhamos algum tempo”. A mania de “deixar para depois” talvez seja a principal razão pela qual o Brasil está aprisionado na armadilha do lento crescimento, que nos prende há algumas décadas a uma expansão pífia da renda per capita.

Não é difícil ver o que nos espera se nos contentarmos com uma reforma do tipo “meia-sola”. Muito em breve o teto de gastos deixaria de ser cumprido, e o crescimento explosivo da dívida pública só poderia ser evitado com o aumento de impostos ou, simplesmente, com a emissão de moeda, ambos piorando ainda mais as já precárias perspectivas de crescimento. Mais dramático ainda, é que mesmo aprovando integralmente a excelente proposta do governo ainda teremos de realizar um enorme esforço para colocar o País na rota do crescimento sustentável. Abordo aqui dois dos inúmeros desafios que temos pela frente.

O primeiro é a necessidade de uma reforma nos impostos sobre bens e serviços, unificando o IPI, o ICMS, o PIS e o Cofins em um único IVA nacional, cobrado onde o produto é consumido, e não onde ele é produzido. Há uma distância enorme entre essa proposta, defendida por Bernard Appy, e a forma envergonhada de um IVA federal atualmente discutida no Ministério da Economia. O segundo é uma corajosa abertura da economia ao setor externo, não somente derrubando as tarifas sobre as importações, que no Brasil superam as de qualquer país que tenha criado uma indústria competitiva, mas fazendo profunda limpeza na proteção não tarifária, como os índices de conteúdo nacional, entre muitos outros.

Além da enorme complexidade de nosso sistema tributário, que é um convite à corrupção, ele estimula a guerra fiscal entre Estados. Os maiores compradores de automóveis residem nos centros urbanos do País, que na sua maioria se situam na franja litorânea onde estão também os portos nos quais são embarcados os veículos exportados. Porém, em nome de gerar empregos, o Estado de Goiás criou um estímulo para atrair uma montadora. É como se as laranjas produzidas em São Paulo fossem transportadas para a serem esmagadas transformando-se em suco em Minas Gerais voltando em seguida para São Paulo onde o suco será consumido ou exportado. Este, apesar de ser um exemplo hipotético, resume o que a quase totalidade dos Estados vem fazendo. São Paulo, que até recentemente recusara-se a entrar nessa guerra, a ela vem aderindo alegremente em nome de gerar empregos.

Além da perda de receita agravar a precária situação fiscal dos Estados, tais distorções tributárias são responsáveis pela ineficiência da indústria: no sistema atual os créditos tributários gerados em um Estado não são recuperáveis no Estado de destino, e uma de suas vítimas são as exportações. Como o governo responde a reivindicações do setor privado, que são tanto maiores quanto mais intensas forem as distorções, cria-se um regime de compadrio, no qual o maior estímulo dado aos empresários é dirigir-se a Brasília, com “sugestões” para resolver o problema. Se os governantes fossem motivados a atingir o bem-estar da sociedade como um todo, resistiriam a tais pressões. Mas infelizmente um dos seus principais (se não o principal) objetivos é a manutenção do poder, o que os leva a praticar o compadrio, favorecendo a empresa e ignorando o bem comum.

O governo precisa se convencer de que tem vários desafios. O primeiro é batalhar pela aprovação de uma versão robusta da reforma da Previdência, de forma a estancar a crise fiscal, que ainda está em estado latente, mas que não permanecerá nele para sempre. O segundo é definir um programa de reformas do qual, no mínimo, constem a abertura da economia e a reforma tributária. O único objetivo socialmente aceitável de uma reforma tributária é reduzir as ineficiências, e ao fazê-lo cortar o poder dos grupos de pressão para obter uma “ajuda” fiscal ou creditícia às empresas mais próximas do poder político. E o único objetivo da abertura da economia é aumentar a produtividade da indústria, dando aos empresários o estímulo socialmente correto que é, através da busca do lucro para seus acionistas, retribuir à sociedade com o crescimento da produtividade do trabalho.

Fonte: Estado de S. Paulo

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Affonso Pastore