O Estado de S. Paulo
O Brasil mudou, o Brasil está mudando, o Brasil continuará a mudar. Apesar – e por causa – de nossos inúmeros, inegáveis e, por vezes, assustadores desafios, de curto, médio e longo prazos. Porque governos, e a sociedade que os elege, não têm alternativa senão procurar enfrentar tais desafios, antes que percepções de custos crescentes se tornem geradoras de crises mais sérias.
Em artigo neste espaço (O que temos a ver com gregos e outros?), de maio de 2010 – décimo aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal –, após comentar a crise na zona do euro, escrevi, em meio ao nosso enganoso clima de 2010, que “era nos períodos de bonança e de euforia que se deveria precavidamente preparar o terreno para tempos mais difíceis – que sempre chegarão”.
Notei que tão ou mais importante que comemorar a primeira década da lei seria resistir à miríade de pressões para que ela fosse desvirtuada, não permitindo que o espírito que presidiu à sua elaboração, no final dos anos 1990, fosse gradualmente deixado de lado. Isso seria, a meu ver, “o ovo da serpente” de futuras crises fiscais, que estariam por trás de dificuldades para assegurar o crescimento sustentável da economia.
Pois bem, os tempos mais difíceis nos chegaram, e com força historicamente inédita, nos últimos três anos. A recessão atual começou, não por acaso, no segundo trimestre de 2014, a recuperação sendo muito gradual: o nível de renda real per capita de 2013 não deverá ser alcançado antes do início dos anos 2020; os sinos do poeta – “não me perguntes por quem os sinos dobram…” – dobram agora para nos alertar, mais uma vez, que o tempo não está correndo a nosso favor, há limites para a procrastinação e corremos sério risco de ficar para trás, de virar um país velho antes de nos tornarmos um país mais rico.
A preocupação, bem expressa pela atual equipe econômica do governo federal, com o equacionamento do grave desequilíbrio de nossas contas públicas e com a necessidade de reformas para o crescimento é hoje expressa também por governadores e prefeitos, a cuja posse assistimos domingo passado. A conta chegou para todos e não é mais possível contemporizar. Há decisões difíceis à frente, em especial nas áreas de pessoal e previdência, que em número expressivo de Estados superam em muito os limites estabelecidos pela legislação.
Permito-me lembrar um episódio em que liderança política e procedimentos adequados para construir consensos foram bem-sucedidos. Percepção de crise na previdência dos EUA no início dos anos 80, com implicações de longo prazo, levaram à criação de uma comissão bipartidária de alto nível para propor uma solução. Quatro importantes passos foram acordados por seus membros, na partida.
O primeiro foi delimitar com clareza o problema que estavam responsáveis por tratar. O segundo foi conseguir que todos concordassem com as dimensões numéricas do problema – “todos têm direito a desenvolver suas próprias opiniões, mas ninguém tem o direito de criar os próprios fatos”. O terceiro foi manter informado sobre os trabalhos o próprio presidente da República. O quarto foi promover consenso de que, uma vez alcançado acordo na comissão, todos o defenderiam contra emendas que o desfigurassem. A proposta da comissão foi aprovada pelo Congresso, promulgada em 1983 e permitiu o funcionamento da Seguridade Social por décadas à frente.
É isso que o governo federal está tentando alcançar com o imprescindível projeto de reforma da Previdência enviado ao Congresso no mês passado. Vale lembrar que cerca de 16 anos atrás deixamos de avançar – por um voto – nesse processo de reforma. Vale lembrar também que em 2010 o excelente livro Demografia, a Ameaça Invisível – O dilema previdenciário que o Brasil se recusa a encarar, publicado por Fábio Giambiagi e Paulo Tafner, teve o respaldo público de nada menos que dez ex-ministros da Fazenda do Brasil. Já citei em artigo neste espaço – em 2014 – a pertinente observação de Giambiagi sobre nossa Previdência: “Este é um desafio cujas dimensões ainda não foram percebidas pela opinião pública – e o que é mais grave, nem pelo governo”.
Pois bem, o governo do presidente Temer teve a coragem de, reconhecendo a situação insustentável das contas da Previdência no Brasil, enfrentar esse desafio, que outros erroneamente preferiram evitar. Espera-se que o Legislativo possa aprovar o projeto até meados de 2017, reduzindo esta grande incerteza que ora paira sobre o futuro das contas públicas – e o crescimento – do País. Hoje, cada governador e cada prefeito no Brasil tem a obrigação de conhecer bem os gastos (nível e composição, em particular de pessoal e encargos previdenciários) e as receitas (nível e composição) de seus respectivos Estados e municípios.
É sabido que governadores e prefeitos estão muito preocupados com a evolução de sua receita corrente líquida e solicitando ajuda ao governo federal para lidar com os custos de suas dívidas para com a União. Mas o governo federal tem toda a razão em exigir contrapartidas dos Estados e municípios para o equacionamento de suas contas públicas no médio e longo prazos. A propósito, há um excelente artigo recente de Murilo Portugal descrevendo a evolução do processo de negociação com Estados e municípios desde a Emenda Constitucional 3/93 até a Lei de Responsabilidade Fiscal. É uma pena que depois de tudo, por ações, omissões, complacências, equívocos e flagrantes desrespeitos à lei, tenhamos chegado à situação a que chegamos. Mas esta terá de ser enfrentada, como foi nos anos 90.
Continuo acreditando na frase de abertura deste artigo, palavras que utilizei com frequência no passado. O País tem, sim, capacidade de resposta – e os anos de 2017 e 2018 constituem biênio crucial para o vislumbre dos caminhos, na próxima década, deste “anacronismo-promessa chamado Brasil”, na expressão-síntese de Eduardo Gianetti.
As opiniões aqui expressas são as do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.