O Estado de S. Paulo
O regime de metas de inflação livrou o Brasil do pesadelo inflacionário vivido durante décadas. Desde 1999, vêm se acumulando evidências de que nas condições prevalecentes no Brasil a política monetária tem eficácia, e que com a elevação da taxa de juros uma trajetória crescente da inflação pode ser tanto interrompida quanto invertida.
Em artigo recente publicado no Valor Econômico André Lara Resende (1) levanta a conjectura de que a inflação elevada no Brasil se deve aos juros altos. Na defesa de seu argumento ele nos ofereceu o suporte do modelo desenvolvido por Cochrane (2), que começa assumindo uma economia com a taxa de juros próxima de zero. Em tal circunstância, mesmo diante da inflação quase nula, o banco central eleva a taxa nominal de juros, e como valem as expectativas racionais, todos os indivíduos passam a esperar uma inflação maior. Mas esperam, também, que a taxa real de juros não se mova, que é algo de aceitação muito difícil a priori. A única reação, segundo Cochrane, é o aumento da inflação. Talvez as previsões desse modelo possam ser válidas sob um particular conjunto de condições, para algum país em particular. Mas será que seriam válidas para o Brasil?
A única forma de darmos uma resposta é através da utilização cuidadosa das evidências empíricas. Nos quase 20 anos de vigência do regime de metas de inflação nunca tivemos evidências de que – com as devidas defasagens – a inflação e a atividade econômica tivessem deixado de responder à taxa de juros na forma prevista pelo modelo-padrão, que não admite previsões como a exposta no parágrafo anterior. Em todos os episódios de elevação da taxa de juros, no Brasil, a atividade econômica sempre se desaqueceu e a inflação sempre caiu.
Tivemos até mesmo um experimento – realizado em 2011 – que parece ter sido delineado sob medida para colocar à prova a validade do modelo de Cochrane para o Brasil. Foi a redução “na marra” da taxa de juros, que em vez de provocar a queda da inflação levou a um período no qual ela teve forte crescimento, que só recentemente foi revertido.
No ciclo de queda de juros que está se iniciando atualmente assistiremos à queda da inflação, mas não porque a queda de juros tenha causado o comportamento da inflação, e sim porque a política monetária teve eficácia em derrubar a inflação, criando as condições para a queda da taxa de juros.
Porém, há muito sabemos que sob um conjunto particular de circunstâncias não somente a eficácia da política monetária pode cair, como podemos chegar ao extremo no qual o aumento da taxa de juros leva ao aumento da inflação. É o que ocorre quando o país se torna prisioneiro da “dominância fiscal”. Uma versão dessa hipótese foi desenvolvida por Eduardo Loyo (3).
Os déficits públicos são financiados por dívida pública e, do ponto de vista dos indivíduos, os títulos públicos são ativos financeiros que integram o seu estoque de riqueza. Mas será que ao aumentar o estoque de riqueza os déficits financiados com dívida levam ao aumento da demanda agregada? A resposta depende do comportamento do governo. Se este obedecesse à sua restrição orçamentária intertemporal, e na sequência de um período de déficits primários gerasse uma sequência de superávits cujo valor presente fosse igual ao da sequência de déficits, o aumento do estoque de dívida não seria percebido como riqueza. Mas num mundo em que o governo não obedece à restrição orçamentária intertemporal os indivíduos percebem a dívida pública como riqueza, e seu aumento amplia a demanda por bens e eleva o nível de preços. Nesse caso a inflação deixa de ser um fenômeno monetário, como pregava Friedman, e passa a ser um fenômeno no qual há “muita riqueza em busca de poucos bens”.
Como foi advertido por Loyo, isso leva a um “paradoxo sobre a taxa de juros”, no qual em vez da elevação da taxa de juros provocar a queda da inflação, ela aumenta a dívida pública; a riqueza dos indivíduos; e a demanda agregada, conduzindo ao crescimento do nível de preços.
As mesmas conclusões foram obtidas por Blanchard (4), usando um modelo bem diferente. Na transição de FHC para Lula o Brasil ainda era vítima do “pecado original” – a dificuldade de se financiar com ativos emitidos em sua própria moeda –, e uma elevada proporção da dívida pública estava atrelada ao dólar.
Naquele período havia o temor de que o novo governo abandonaria o compromisso com os superávits primários, o que gerou uma fuga de capitais que depreciou o real, elevando a dívida pública, e expondo o País ao risco de uma crise de solvência com uma componente de profecia autorrealizável. O aumento da taxa de juros piorava a dinâmica da dívida, depreciando o real e aumentando a inflação. O problema somente se resolveu quando Lula deu provas que não se afastaria da responsabilidade fiscal, com as metas de superávit primário voltando a ser cumpridas com precisão próxima à do governo anterior.
Algo semelhante ocorreu em 2014 e 2015. A dinâmica da dívida não mais dependia da taxa cambial, mas o governo abandonou o compromisso com os superávits, quer porque – a exemplo de governos anteriores – não se dispunha a controlar o crescimento dos gastos, quer porque se esgotou a sua capacidade de gerar receitas. Com isso, cresceu o risco de insolvência, depreciando o real e elevando a inflação, e como uma taxa de juros mais elevada acelerava o crescimento da dívida, provocava o aumento do risco de insolvência e uma nova depreciação cambial, aumentando ainda mais a inflação.
A mudança de governo e o início de um programa de reformas fiscais passaram a indicar que ainda que por algum tempo a relação dívida/PIB deva persistir em crescimento, é alta a probabilidade de que será gerada uma sequência de superávits primários cujo valor presente derrube a relação dívida/PIB. A expectativa de que o governo volte a obedecer a sua restrição orçamentária intertemporal aliviou as pressões sobre o real e consequentemente sobre a inflação.
Ao final, preservou-se a eficácia da política monetária, e a política fiscal deixou de ser um entrave à execução da política monetária, desaparecendo o risco da dominância fiscal. Porém tudo mudará caso o governo renegue o compromisso com as metas fiscais, provocando novo aumento dos prêmios de risco e novas depreciações do real.
Esta já seria, isoladamente, razão suficiente para saudarmos a advertência de André Lara Resende de que os resultados da política monetária dependem da política fiscal. Minha discordância é que nem vejo o Brasil próximo de uma situação de dominância fiscal, nem o esforço de evitá-la seria a única razão para realizar as reformas que devem mudar o nosso quadro fiscal. Ainda que não cheguemos ao extremo da dominância fiscal temos de ter consciência de que o crescimento dos gastos acima do crescimento dos recursos é altamente prejudicial ao crescimento econômico, e que o País tem de abandonar essa prática com reformas que controlem o crescimento dos gastos, tornando-os eficientes.
(1) LARA RESENDE, A. JUROS E CONSERVADORISMO INTELECTUAL. VALOR ECONÔMICO, JANEIRO DE 2017.
(2) COCHRANE, JOHN H. MICHELSON-MORLEY, OCCAM AND FISHER: THE RADICAL IMPLICATIONS OF STABLE INFLATION AT NEAR-ZERO INTEREST RATES, DEZEMBRO, 2016.
(3) LOYO, E. TIGHT MONEY PARADOX ON THE LOOSE: A FISCALIST HYPERINFLATION, JUNHO DE 1999.
(4) BLANCHARD, O. FISCAL DOMINANCE AND INFLATION TARGETING: LESSONS FROM BRAZIL INCLUÍDO EM INFLATION TARGETING, DEBT, AND THE BRAZILIAN EXPERINCE, 1999 TO 2003. THE MIT PRESS, 2005.
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