Folha de S. Paulo
Na luta acirrada para produzir fatos alternativos, keynesianos de quermesse teimam em afirmar que a atual recessão, a maior dos últimos 85 anos, se deve à austeridade adotada no período pós-2014.
Desemprego, miséria, fome, guerra, peste e até unha encravada são atribuídos à política neoliberal e ao desmonte do Estado, patrocinados inicialmente pela presidente Dilma Rousseff (pausa para gargalhada incontrolável) e, mais recentemente, pelo presidente Temer.
Refeito do acesso de riso, minha reação óbvia é: “Austeridade? Onde?”. Não é segredo para ninguém que tenha o hábito saudável — ainda que infelizmente pouco difundido — de olhar os dados que não há quaisquer sinais de austeridade, pelo menos do lado fiscal. Ao contrário, o que se vê é um processo contínuo de aumento do gasto público.
É verdade que os números foram bastante poluídos por “pedaladas” e “despedaladas” e que a própria crise econômica realimentou o fraco desempenho fiscal, dado que receitas tributárias costumam flutuar em linha com o crescimento econômico. Fica assim mais difícil avaliar o que tem ocorrido com a política fiscal, mas não chega a ser uma tarefa intransponível.
Recentemente, por exemplo, a Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado que tem produzido pesquisa de boa qualidade, apresentou estimativas do desempenho fiscal que buscam dar uma base numérica mais sólida a essa variável, seguindo metodologia proposta pelo FMI (Fundo Monetário Internacional).
O primeiro procedimento consiste em “limpar” receitas e despesas extraordinárias, para que possamos observar os números fiscais ditos “recorrentes”.
Assim, por exemplo, retira das receitas itens atípicos, como a repatriação de recursos no ano passado, antecipação de dividendos, concessões etc.; já do lado das despesas, desconsideram-se fenômenos como a capitalização da Petrobras, em 2010, e a correção das pedaladas, em 2015, entre outras.
Dessa forma, enquanto os dados oficiais apontam para um superavit primário médio do governo federal de 2011 a 2014 de 1,4% do PIB (Produto Interno Bruto), o superávit recorrente no mesmo período é estimado em apenas 0,5% do PIB, bem abaixo do oficial. Já em 2015 e 2016, o déficit oficial atingiu 2,5% do PIB, mas o déficit recorrente foi ainda maior: 3,5% do PIB.
Como notado, parte da piora fiscal dos dois últimos anos reflete a recessão, requerendo um segundo procedimento, que busca corrigir as perdas fiscais (principalmente de receitas) daí originadas, chegando ao chamado “resultado estrutural”, isto é, limpo tanto de receitas e despesas extraordinárias como dos efeitos do ciclo econômico.
Assim, se o resultado estrutural estiver se reduzindo de um ano para outro (isto é, quando o déficit aumenta ou o superávit cai), a política fiscal é dita “expansionista”; caso contrário, é “contracionista”.
Os números são eloquentes: de 2012 a 2016, houve contínua expansão fiscal, equivalente a 0,9% do PIB em média. Nos últimos dois anos, essa atingiu 0,6% e 1,5% do PIB, respectivamente.
Em português, não houve nenhum traço de austeridade, pelo contrário. Num mundo ideal, os defensores da ideia de que a austeridade causou a crise teriam que enfiar o rabo entre as pernas; no nosso continuam a dizê-lo, movidos, é claro, a doses cavalares de desonestidade intelectual.
As opiniões aqui expressas são as do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.