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A Lava Jato e o futuro do País

O Estado de S. Paulo


À medida que nossas instituições vão sendo testadas pelo desnudamento de um quadro de corrupção profundamente difundido entre empresas e políticos, naturalmente nos deparamos com enorme incerteza sobre o futuro. Hoje não se sabe se o presidente da República conseguirá manter-se no cargo por dias ou semanas. Se sobreviver, sobretudo por não ter substituto natural, não sabemos se terá suporte no Congresso para continuar a agenda de reformas que o legitima perante a sociedade. Se sair, passamos a depender do resultado de uma eleição indireta, com parlamentares cada vez mais distantes de representarem os anseios da sociedade.

Tamanha incerteza é terreno fértil para análises e previsões tendenciosas ou superficiais, revelando ou o objetivo de defender interesses, ou a ingenuidade dos que preferem agarrar-se a uma previsão, ainda que agourenta, a fazer o esforço de construir um caminho melhor, iluminando a saída do labirinto atual. A última moda é vaticinar que teremos o mesmo fim da Itália, a saber, que a Lava Jato repetirá o fracasso da Operação Mani Pulite, o que nos condenaria a viver mergulhados na corrupção e na estagnação econômica.

Buscar lições na comparação entre dois países exige mais do que uma simples passada de olhos sobre a superfície dos fatos. Há alguém que, em sã consciência, considere possível que o nosso próximo presidente da República seja um empreiteiro, como era Silvio Berlusconi, por exemplo? Há alguém que imagine que um superministério da infraestrutura possa vir a ser criado e comandado, no Brasil, por Marcelo Odebrecht ou um de seus pares? Pois foi isso que aconteceu na Itália, pondo fim à eficácia da luta contra a corrupção, pelas mudanças nas leis engendradas pelo Executivo e pelo Legislativo, minando a independência do Judiciário e tornando impraticável a punição de crimes de corrupção. A população brasileira está suficientemente informada e vacinada contra o vírus da complacência para repetir esse tipo de erro e retrocessos têm sido impedidos pelo pleno funcionamento de pesos e contrapesos entre os Poderes da República.

Há várias diferenças entre os dois países e entre os momentos históricos em que as Operações Mani Pulite e Lava Jato ocorrem, o que alimenta meu otimismo com os rumos do Brasil. Nos últimos 25 anos o mundo mudou e hoje a Lava Jato se beneficia de informações cruciais vindas de outros países signatários de acordos de colaboração sobre lavagem de dinheiro e crimes financeiros.

Também importante é a revolução verificada nas comunicações, favorecendo a plena divulgação dos fatos relativos aos inquéritos e às investigações, com as redes sociais amplificando vídeos de audiências e de colaborações premiadas. Tal grau de transparência, aliado à qualidade – e liberdade – da nossa imprensa, faz com que a verdade apareça por intermédio de réus confessando crimes, ao vivo, e do reconhecimento de volumes astronômicos de propinas pagas, causando enorme impacto nas pessoas.

Na Itália, há 25 anos, não houve tal transparência, abrindo espaço para uma guerra de versões que espalhou lama por todos os lados, confundindo e atordoando a população. A operação era acusada de estar sendo financiada pela CIA – ou pela KGB, dependendo da ideologia do acusador – para destruir a classe política; e a população, desinformada, se encolheu, esperando a onda passar. A onda, porém, não só não passou, como o pior estava por vir nas décadas seguintes.

Há, ainda, questões mais fluidas, mas igualmente relevantes a diferenciar os dois países. Como diz Piercamillo Davigo, na Itália se aprende a ser corrupto desde pequeno, na escola. Como os critérios de avaliação do desempenho dos alunos é altamente subjetivo, com exames de fim de curso valendo para a admissão nos níveis subsequentes, presentear professores costuma render boas notas e aprovação certa. Essa é uma fragilidade institucional grave, que pereniza a desimportância da meritocracia e do respeito às regras. Há inúmeros exemplos na mesma direção. A existência da Máfia e suas inter-relações com a corrupção acarretaram dificuldade adicional ao combate à corrupção. Sobretudo se lembrarmos que a Operação Mani Pulite foi realizada após os “anos de chumbo”, com acirramento da luta política e contra a Máfia, que resultou em inúmeros atentados nas grandes cidades, matando centenas de pessoas. Diante desse quadro, foi fácil utilizar o medo para minar o apoio da população ao combate à corrupção.

Apesar das condições favoráveis ao Brasil, há muito trabalho pela frente. A Lava Jato não tem volta: é apoiada pela grande maioria da população e vem sendo operada com enorme eficiência. Essa é a condição necessária, mas não suficiente para reduzir a corrupção. Para que os efeitos sejam permanentes é necessário aprimorar as instituições visando, por exemplo, a aumentar o custo da corrupção, que é um crime racional do início ao fim. Saber que é grande a possibilidade de ser apanhado e, sendo apanhado, ser punido é o primeiro passo para reduzir consistentemente a corrupção.

Para tanto a possibilidade de prisão a partir de julgamento em segunda instância, como entendeu o Supremo Tribunal Federal, é crucial e se espera que não haja retrocesso. A sobrecarga de instâncias superiores, em parte decorrente da abrangência do foro privilegiado e, em parte, da prodigalidade recursal existente, leva a tal morosidade nos julgamentos que aumenta a sensação de impunidade.

Parte da tarefa inclui, ainda, uma reforma política, com redução do número de partidos, voto distrital e regras claras de financiamento de campanhas.

Longe de ser uma cruzada moralista, como querem alguns detratores, reduzir a corrupção é fortalecer a democracia, fazendo com que todos, ricos e pobres, governantes e governados, sejam iguais perante as leis. Só assim é possível criar um ambiente saudável para o funcionamento do País, com regras claras e transparentes nas relações entre empresas, governos e indivíduos. Essa é a maneira de reduzir a incerteza e aumentar o bem-estar da sociedade.

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Sobre o autor

Cristina Pinotti