Estado de São Paulo
O que estabelece a diferença na sorte dos mortais pode ser reduzido a três determinações fundamentais. O que alguém é; portanto, a personalidade no sentido mais amplo. Nessa categoria se incluem a saúde, a força, a beleza, o temperamento, o caráter moral, a inteligência e seu cultivo. O que alguém tem – a propriedade e posse em qualquer sentido. O que alguém representa: aquilo que se é na representação dos outros e que, portanto, consiste nas opiniões deles a seu respeito.”
Assim escreveu Schopenhauer, em 1851. E a propósito dessa reflexão volto a um tema que me é caro: essas determinações fundamentais seriam igualmente aplicáveis à sorte dos países? Aquilo que um país é– sua “identidade” no sentido mais amplo; aquilo que um país tem – seus recursos naturais, o estoque de capital físico e humano; e, por último, o que o país representa na percepção de outras sociedades e culturas? Essa percepção condiciona a sua reputação, que não repousa apenas sobre a autoavaliação. Uma pessoa, e talvez um país, precisa também ver-se sob a lente da opinião dos outros.
Como nos vemos a nós, brasileiros? Como somos, vistos por outros? Cada sociedade tem ideias, mais ou menos compartilhadas, precárias que sejam, sobre seu passado, seu presente; bem como vislumbres do futuro possível. Recente pesquisa do Datafolha identificou “valores comuns à grande maioria” dos brasileiros, dentre os quais sobressaem “a crença no governo, depositário das esperanças nacionais” e “a moral cristã em relação a costumes”. Para 76% dos entrevistados, “o governo deve ser o maior responsável pelo investimento e pelo crescimento”. Nada menos que 83% dizem que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”. No editorial Ideologia nacional em que comenta a pesquisa, a Folha de S.Paulo opina que, “com raízes que remetem ao surgimento da Nação, tais valores não são imutáveis, mas ainda parecem os guias mais genuínos do que seria uma ideologia brasileira”. Ou, pelo menos, de uma certa ideia de Brasil, real ou desejado.
Ocorrem-me duas ilustrações relevantes do enraizamento de certas ideias de Brasil. Joaquim Falcão reuniu em belo livro artigos publicados entre 1982 e 1988 por Raymundo Faoro na revista Istoé/Senhor, em que incluiu entrevista com Faoro a propósito da transição do regime militar para a Presidência civil. Ancorado em seu clássico Os Donos do Poder, Faoro argumenta que em 1985 o Brasil tentava encontrar mais uma solução de conciliação intraelite, de longuíssima tradição entre nós. Tratava-se claramente de “uma certa ideia do Brasil’. Como a tem, seguramente, José Mutilo de Carvalho. Seu recente e belíssimo Pecado Original da República reúne artigos e ensaios que ajudam a compreender por que, embora uma democracia, tanto nos falte para constituirmos uma verdadeira República. Para Faoro, como para José Murilo, são necessários avanços que exigem mediações e lideranças de forma a conter os inevitáveis conflitos de interesse – e o consequente potencial de instabilidade, polarização e violência. Tancredo Neves era, à sua época, o principal depositário das esperanças de mediação – e foi-se exatamente quando dele e de pessoas como ele mais se precisava. Como precisa o Brasil de agora, com urgência. De muitas pessoas, não de um messias.
Entre os quase 200 países soberanos, contam-se nos dedos de uma mão os que estão simultaneamente na lista dos dez maiores em termos de extensão territorial, população e tamanho de sua economia. Uma década antes do surgimento da sigla Bric, George Kennan antecipou que os países em questão – Brasil, Rússia Índia e China –, além dos EUA, tinham o que chamou de hubrys of inordinate size: “Certa falta de modéstia na autoimagem do grande país; um sentimento de que seu papel no mundo deveria ser equivalente à sua dimensão nas três áreas acima, com a consequente tendência a superlativas pretensões e ambições”. Prossegue Kennan: “Em geral, o país grande tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória, aos quais Estados menores são menos inclinados”. Os países-monstro, como os designa o autor, “por vezes criam problemas para si próprios, mesmo quando não constituem problemas para outros”.
É, inequivocamente, o caso do Brasil. Nossos problemas são autoinfligidos, não somos vítimas passivas de eventos externos, fora de nosso controle – essa cantilena que, durante muito tempo, encontrou ampla acolhida entre nós. Não tenhamos dúvida: assim nos veem os outros. E esperam que possamos resolver esses problemas, pelos quais ninguém podemos culpar. O mundo nos olha através de nossos indicadores sociais e econômicos relevantes. Somos a sétima ou oitava economia do mundo, mas em termos de PIB per capita há mais de 40 países à nossa frente. Na avaliação internacional da OCDE sobre o aprendizado (alunos na faixa dos 15 anos) em linguagem, matemática e ciências estamos entre os dez últimos colocados em universo de quase 70 países, resultado de desigualdades e deficiências de aprendizagem nas idades certas. Outros dados relevantes – sobre a precariedade de nossas finanças públicas, por exemplo – abundam.
Nosso futuro está em nossas próprias mãos. Como sempre esteve, e estará. Nas eleições de outubro o eleitorado brasileiro tomará decisão histórica. O próximo quadriênio permitirá avaliar quão correta é a inquietante observação do jornalista Hélio Schwartsman Folha, 25/3: “Estamos, muito provavelmente, condenados a ser um país de renda média e um pouco menos civilizado do que teria sido possível”. Apesar de tudo, e paradoxalmente, também nos vemos, e somos vistos, como um país extraordinário na sua diversidade, de enorme potencial, com recursos naturais, humanos, técnicos, bem como recursos culturais, morais e criatividade. Que podem e devem nos levar, talvez, à superação das dificuldades presentes, que são parte real e sofrida – parafraseando Aguinis – do “atroz encanto” de ser brasileiro.
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