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Vinculações

Folha de São Paulo


Atualmente, 25% de tudo o que é arrecadado através de impostos e transferências nos Estados e municípios têm que ser aplicados em educação. O ministro da Economia propôs recentemente desvincular todos os gastos da União, dos Estados e municípios. Isso significa que os gastos com educação e saúde não estariam mais vinculados às receitas em nenhum ente federativo. Se essa medida for aprovada, os senadores, deputados federais, estaduais e vereadores teriam liberdade para decidir aonde seriam gastos todos os recursos arrecadados através de impostos no país. Será que isso seria bom?

Em primeiro lugar, é preciso tratar de forma diferente a desvinculação dos recursos na União do que ocorreria nos Estados e municípios. Atualmente, os gastos da União com educação e saúde já foram desvinculados das receitas através da PEC do teto de gastos. A única restrição atualmente em vigor para esses gastos é que eles não podem diminuir em termos reais. Assim, só será necessário mexer nesses gastos se o governo quiser revogar esse aspecto da PEC e permitir também uma queda de gastos nessas áreas.

Com relação aos Estados e municípios, as vinculações permanecem. Vale notar que a vinculação de gastos com a educação tem uma longa história nas constituições brasileiras. Como mostramos em livro que será lançado em breve, a primeira Constituição a vincular recursos à educação foi a de 1934, que vinculou 10% das receitas da União, 20% dos Estados e 10% dos municípios. A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, eliminou todas as vinculações. Mas elas retornariam na Constituição de 1946, elaborada durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.

A Constituição de 1967, imposta pelo regime militar, eliminou novamente todas as vinculações. Mas elas retornam com a Constituição de 1983, que estabeleceu porcentagens de 13%, 25% e 25% para a União, Estados e municípios, respectivamente. Por fim, a Constituição atual aumentou a vinculação dos recursos da União de 13% para 18%, o que foi alterado  recentemente pela PEC do teto de gastos.

Mas qual o sentido de vincular certos gastos a receitas? A ideia é que educação e saúde são tão importantes para a sociedade que não se deve deixar nas mãos de deputados, senadores e vereadores a decisão final sobre quanto investir nessas áreas. Mas, há argumentos muito fortes contra as vinculações. Em tese, como todos os deputados e vereadores são eleitos pela população, bastaria retirar por meio do voto aqueles que não aprovarem boas leis nessas áreas. Além disso, as vinculações provocam rigidez orçamentária ao longo do tempo. Por exemplo, devido à transição demográfica, o número de crianças está diminuindo e o número de idosos aumentado. Não seria melhor então gastar menos recursos com educação e mais com saúde?

Outro argumento é que às vezes sobram recursos nos Estados devido a um aumento inesperado de receitas, que têm que ser obrigatoriamente gastos com educação, mesmo que o governador tenha outras prioridades mais urgentes, como a segurança pública, por exemplo. Assim, não seria melhor eliminar essas vinculações?

O problema é a captura de recursos públicos por parte das elites locais. Esse fenômeno, descrito em vários artigos acadêmicos importantes em economia e ciência política, faz com que uma parte significativa dos recursos públicos, que deveriam ser aplicados para beneficiar a maioria da população com educação e saúde pública, por exemplo, sejam desviados (capturados) pela elite local para políticas que a beneficiam. A maioria dos municípios brasileiros, que têm desigualdade extrema, elite coesa e população pouco instruída são o palco ideal para que esse tipo de captura ocorra.

Vale notar que o progresso recente nas áreas com recursos vinculados foi bem maior do que nas áreas sem vinculação. Por exemplo, hoje em dia 97% das crianças com entre 10 e 15 anos de idade frequentam a escola. A mortalidade infantil, que era de 45% em 1988, passou para 13% em 2018. Enquanto isso, somente 55% dos domicílios têm acesso ao saneamento básico. Obras embaixo da terra não dão votos. O que teria acontecido com educação e saúde se os gastos nessas área não tivessem sido vinculados?

Sem a vinculação teria sido impossível criar o Fundef (Fundo de desenvolvimento do ensino fundamental) e o Fundeb (seu sucessor), que foram os principais responsáveis pelo aumento das matrículas nas últimas décadas. Para que o Fundeb funcione, os Estados e municípios têm que transferir 20% de suas receitas (ou seja, 80% dos recursos que têm que ser gastos com educação) para fundos estaduais. O montante de cada um desses fundos é então redistribuído para os municípios de acordo com o número de alunos em cada rede. Isso faz com que os municípios queiram manter o maior número possível de alunos na escola para poder receber mais recursos do fundo. Sem a vinculação, cada município poderia escolher quanto iria gastar com educação e, portanto, quanto iria contribuir para o fundo. Obviamente, os municípios mais ricos iriam diminuir seus gastos com educação para reduzir suas perdas com o fundo. Isso acabaria com o Fundeb.

Em suma, a vinculação de recursos nos Estados e municípios, apesar de todos os seus problemas, é um mal necessário para que os recursos públicos não sejam totalmente capturados pelas elites locais. Se vivêssemos em outro país, com menos desigualdade, eleitores mais informados e elites mais esclarecidas as vinculações não seriam necessárias. Mas aqui no Brasil, por enquanto, esse ainda não é o caso, infelizmente. Na verdade, ainda estamos muito longe disso.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho