A política fiscal, em um país em desenvolvimento e com inegáveis carências sociais, impõe escolhas difíceis: por exemplo, investir em infraestrutura econômica ou em capital humano? A existência de diversos objetivos, e um orçamento limitado, implica que a política fiscal tenha necessariamente que administrar conflitos, que serão ainda mais intensos quando se espera muito do Estado – o que é típico de nossa tradição cultural.
No Brasil, por décadas esses conflitos foram resolvidos pela inflação, que na prática funcionava como um mecanismo altamente regressivo de financiamento dos gastos públicos. Depois do Plano Real, os conflitos foram resolvidos por meio de elevações da carga tributária e da dívida pública, mas o gasto seguiu crescendo em ritmo acelerado: entre 1997 e 2016, o gasto público primário federal cresceu, em média, 6% ao ano em termos reais. Nesse período, a dívida bruta do governo geral saiu de 31,8% para 78,3% do PIB, e a carga tributária aumentou de 26,4% para 32,3% do produto.
Pode-se argumentar que a expansão dos gastos refletiu, em certa medida, fatores estruturais ou o “contrato social” implícito na Constituição de 1988. Mas parece evidente que tal ritmo de crescimento, frente a uma taxa média de crescimento do PIB de apenas 2,4% ao ano, era insustentável. Alternativamente, tal ritmo de crescimento dos gastos, bem à frente do crescimento do produto, só seria compatível com a sustentabilidade da dívida pública, caso fosse possível manter a carga tributária em perene elevação.
Quando o Congresso demonstrou, ao não renovar a CPMF, no final de 2007, que a carga tributária havia chegado ao limite do politicamente aceitável, o regime começou a ser posto em xeque. Os diversos erros da chamada “nova matriz econômica” aceleraram o processo, mas a política fiscal começou a vislumbrar seus limites ainda no final da década passada.
A aprovação da PEC 95, de 2016, que instituiu o chamado teto de gastos – na realidade, um limite para a expansão dos gastos -, veio em reação a esta tendência. A emenda 95 foi uma importante inovação na política fiscal brasileira ao tentar romper o ciclo de aumento de gastos, impostos e dívida, que tem caracterizado nossa política fiscal. De fato, desde então, o ritmo de crescimento dos gastos desacelerou para 0,7% ao ano (média para 2017 e 2018).
O teto contribui para explicitar os conflitos e escolhas inerentes ao processo orçamentário. Flexibilizar o teto, antes da revisão já prevista para 2026, implica aumentar a carga tributária ou aumentar o risco de deterioração da dinâmica da dívida pública e, possivelmente, financiamento inflacionário dos gastos públicos.
Isso não significa que conviver com o teto seja fácil. De fato, dadas as regras existentes, notadamente a vinculação de benefícios previdenciários ao salário mínimo (pouco usual na experiência internacional), e a política de aumentos reais deste último, passamos a incorporar os ganhos de produtividade de trabalhadores jovens à renda de idosos aposentados, com impacto fiscal relevante. Caso o país volte a praticar elevação real do salário mínimo de forma consistente, será forçoso reconsiderar os mecanismos de vinculação. Colocando de outra forma, inviabilizar aumentos reais do salário mínimo, por conta do custo fiscal derivado das vinculações, pode se mostrar socialmente indesejável e politicamente insustentável.
Cabe registrar, também, que o gasto com o funcionalismo federal não tem recuado como proporção do PIB, o que é explicado por reajustes salariais acima da inflação em regime de estabilidade dos servidores públicos (além disso, o número de funcionários públicos federais subiu cerca de 35% desde 2002). Note-se que, em comparações internacionais, o Brasil (incluindo todas as esferas de governo) gasta 13,3% do PIB com seus funcionários e 2,3% em investimento público, ao passo que os países da OCDE, em média, gastam 9,9% e 3,3% do PIB, respectivamente. O fato é que o setor público parece empregar demais: segundo dados do Banco Mundial, compilados pelo colega Pedro Schneider, economista do Itaú Unibanco, a proporção de funcionários na população chega a 12,5%, ante uma média latino-americana de 10,5%.
Além disso, o setor público costuma oferecer um prêmio salarial em relação ao setor privado. Considerando-se dados do Atlas do Estado Brasileiro do IPEA e da RAIS, a remuneração média mensal de um funcionário do Executivo federal era de R$ 8,1 mil (sendo R$ 15,5 mil no Poder Judiciário), contra R$ 2,2 mil no setor privado. Segundo estimativas do Banco Mundial, a redução (não eliminação) do prêmio salarial pela metade (a ser obtida por uma reforma administrativa e uma política de contenção salarial), geraria economias de 0,9% do PIB por ano – quase duas vezes o gasto com o Bolsa Família.
O teto é importante, mas, para que seja mantido, cabe aprofundar a agenda de reformas, atuando nas vinculações que exacerbam o impacto fiscal de aumentos do salário mínimo e, particularmente, na gestão da força de trabalho do setor público.
Fonte: Valor Econômico, 3/10/2019
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