Nos últimos meses, forças políticas de tendências variadas, representadas por ocupantes dos mais altos escalões da República, vêm se aglutinando em torno de um objetivo comum: blindar determinadas pessoas e grupos do alcance da Justiça. Causa estupor, por exemplo, a resposta do presidente do Supremo Tribunal Federal ao pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por suposto desvio de verba de seu gabinete quando era deputado estadual, em caso que envolve seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Em julho, Toffoli suspendeu todos os processos criminais baseados em compartilhamento de dados sobre movimentações suspeitas de dinheiro do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), da Receita Federal e do Banco Central. O plenário do Supremo deve julgar a questão em novembro, mas centenas de casos de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e investigações sobre corrupção foram interrompidos ou não puderam sequer ser iniciados. Em total desobediência a acordos internacionais firmados pelo país, essa atitude nos distancia ainda mais dos padrões exigidos pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), piorando a imagem do Brasil no exterior.
O movimento atual se somou a outro, acalentado há muito por políticos e empresários poderosos, visando “estancar a sangria”, como desejava o então ministro Romero Jucá em 2016 e que hoje significa parar as investigações e reverter as punições de crimes de corrupção desvendados nos últimos anos. Aqui, a lista de “bondades” vindas de um Supremo dividido e em crise permanente é extensa e não para de crescer, como mostra o Ministro Barroso no seu voto no dia 24 de outubro. Vemos a coroação dessa blindagem geral dos amigos do poder na decisão que derrubou a execução da pena a partir da segunda instância. A impunidade resultante da alteração da norma será um incentivo definitivo à criminalidade, configurando um dano considerável à credibilidade do Supremo e uma afronta à maioria da sociedade, que anseia por um país mais íntegro e justo.
Considero, portanto, ser este um bom momento para falarmos sobre “rule of law”, expressão às vezes traduzida como Estado de direito, que, em essência, exprime a existência de instituições que garantam que ninguém, mesmo pessoas situadas nas camadas mais elevadas do poder, está acima da lei. É o império da lei contra o uso arbitrário do poder, princípio que tem de estar presente nas leis e na maneira como elas são aplicadas para que uma verdadeira democracia funcione. Países em que a rule of law encontra-se mais desenvolvida e consolidada são países mais prósperos, estáveis e seguros, onde os direitos fundamentais são respeitados, há transparência e ética nos governos, entre outras vantagens. O exame de alguns dos principais resultados observados no funcionamento da sociedade permite a elaboração de indicadores que medem a qualidade e a evolução da rule of law.
Com base em pesquisas feitas em empresas e famílias, avaliações feitas por ONGs e organizações multilaterais, o Banco Mundial calcula, desde 1996, indicadores de percepção de governança para mais de 200 países – o WGI (World Governance Indicators) – dentre os quais há a estimativa do rule of law que usarei neste texto. Na definição do Banco Mundial, o objetivo deste indicador é captar as percepções sobre o grau de confiança e de respeito dos agentes às regras existentes, em particular a qualidade da exigência de cumprimento dos contratos, os direitos de propriedade, a qualidade da polícia e da Justiça, assim como a probabilidade de ocorrência de crime e violência. As notas vão de -2,5 a +2,5, em ordem crescente de qualidade, e em 2018 o índice do Brasil atingiu apenas -0,27. Os países mais desenvolvidos, como Canadá, Reino Unido, Austrália, Japão, entre outros, estão no topo da classificação, enquanto que os mais pobres ou que passaram por guerras e crises agudas (como Síria, Líbia, Venezuela, Bolívia) estão no extremo oposto. Esta correlação positiva entre rule of law e bem-estar social, medido pelo PIB (Produto Interno Bruto) per capita, fica clara no diagrama de dispersão apresentado abaixo.
Dada a elevada correlação entre os indicadores de qualidade institucional de um país e a corrupção, não surpreende a existência de forte correlação entre o desempenho da rule of law e o Índice de Integridade – que é o inverso do índice de percepção de corrupção – calculado pela Transparência Internacional. Veja no gráfico abaixo:
Além da imagem de 2018, é interessante observar a evolução da situação da rule of law para alguns países a partir de 1996. Há grande estabilidade no desempenho do indicador nos países mais desenvolvidos (Alemanha, Reino Unido, França, Japão etc.), mas a Itália progressivamente se distanciou dos seus pares depois que profundas alterações nas leis, a partir de 1994, abortaram a operação anticorrupção do país, Mani Pulite (mãos limpas, em italiano), provocando forte descrédito no Judiciário. Neste caso, o custo da blindagem dos poderosos fica evidente na deterioração do indicador de rule of law. Na direção oposta, encontramos a Georgia, cujo desempenho melhora marcadamente, colhendo os efeitos de um exitoso programa de combate à corrupção e de fortalecimento do Judiciário. Finalmente, no Brasil, o indicador permanece abaixo da média durante a maior parte do período, muito distante do topo grupo.
Ainda olhando para o Brasil, a análise dos demais indicadores de governança levantados pelo Banco Mundial mostra que, a partir de 2010 e 2011, todos eles apresentam piora, exceto o que mede a liberdade de expressão e transparência, que se descola dos demais. O altíssimo custo da censura à imprensa imposta durante a ditadura militar parece ter vacinado a sociedade, que, felizmente, reage com vigor a cada tentativa de restrição à liberdade vinda de ambos os extremos do espectro político quando no poder. É a preservação deste patrimônio que mantém acesa a esperança de que a pressão da sociedade será capaz de promover mudanças que garantam a construção de uma Justiça mais eficiente e independente do poder político.
Ao serem construídos a partir dos efeitos que as leis e sua aplicação têm sobre a sociedade, os modernos indicadores de rule of law fazem um contraponto importante à ênfase excessiva dada aos aspectos estritamente formais das leis, estratégia muitas vezes utilizada para impedir que elas valham para todos. É evidente que a proibição pelo Supremo da prisão a partir da segunda instância significará um enorme retrocesso na rule of law do país.
Fonte: Nexo, 8/11/2019
*Publicado no Nexo sob o título “O funcionamento do império da lei na democracia brasileira”
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