Como qualquer indivíduo, o Brasil também carrega suas caras do passado sob a cara do presente. Em 1889, entre a população brasileira de 14 milhões de habitantes, 82% eram analfabetos e apenas 10% moravam na área urbana. 130 anos mais tarde, entre os 208 milhões de brasileiros, 87% vivem em áreas urbanas e o analfabetismo se limita a 7% da população adulta. Até a década de 1920, apenas 10% dos brasileiros estavam habilitados a votar e 3% votavam de fato. Hoje, o povo eleitor representa 71% do total da população.
Em que sentido estamos falando de um mesmo país? Os organizadores de 130 anos: em busca da República — Edmar Bacha, José Murilo de Carvalho, Joaquim Falcão, Marcelo Trindade, Pedro Malan e Simon Schwartzman — trazem ao leitor a perspectiva de que o país tem uma identidade na epígrafe do livro. Ali, aparece logo acima de versos do poeta T. S. Eliot uma frase do economista Eduardo Giannetti: “Na vida das nações, não menos que na dos indivíduos, os primeiros momentos de uma trajetória imprimem ao que está nascendo traços de teimosa permanência”.
Na introdução, o economista Pedro Malan menciona os traços do nascituro: a escravidão (abolida apenas um ano e meio antes da Proclamação da República) e o patrimonialismo. A ênfase é no patrimonialismo, com o argumento de que na Colônia, no Império e nos dias da Proclamação da República, como nos dias correntes, é sempre com o governo que se fazem os melhores negócios. Malan cita o economista Rogério Werneck, para quem, no Brasil, o lucro reside em “vender para o Estado, comprar do Estado, ser financiado pelo Estado, transferir passivos para o Estado, repassar riscos para o Estado e conseguir favores do Estado”.
Deus de muitas faces
Ao comparar o país com o indivíduo que guarda os traços da primeira infância, a frase de Eduardo Giannetti evoca a ideia de um país com uma cara que permanece identificável ao longo do tempo. Para entender o que isso significa, penso na meia velha que guardei no fundo da gaveta.
A meia de lã azul furou no lugar onde o dedão do pé insistia em roçá-la. Fiz um remendo com linha vermelha de qualidade diferente da lã original. A meia remendada parece diferente da meia nova, mas continua a mesma meia. Sua matéria mudou, mas sua forma não me engana, e a reconheço como a velha amiga dos dias de frio, única e insubstituível, a mesma que comprei anos atrás numa loja da rua Oscar Freire.
Assim como a meia azul e seu remendo vermelho, o indivíduo e a nação também mudam à medida que o tempo passa, tornando-se materialmente diferentes. Com 130 anos, já não somos mais a criança de décadas atrás, mas nossos amigos insistem em nos chamar pelo mesmo nome. Nossa forma — ou alguma coisa que chamamos de identidade e que nos torna reconhecíveis — persiste, apesar das experiências e do desgaste que se acumularam em nossas vidas com o passar do tempo.
E nossa cara? Acho que foi Marcel Proust que disse, em À sombra das raparigas em flor, que o rosto humano (e eu diria, com mais razão ainda, o rosto da nação) é como o de um deus oriental — um conjunto de faces justapostas, impossíveis de ser enxergadas simultaneamente. Temos de olhar cada uma delas no seu tempo, sob luzes e contextos diferentes.
Portanto, o país não tem uma só cara. Tem muitas, e elas não se refletem ao mesmo tempo em um único espelho. Isso talvez explique a escolha dos organizadores de 130 anos. Eles reuniram acadêmicos de prestígio para contar a saga da República do Brasil em parcelas, cada uma delas sob três perspectivas diferentes.
A forma
Além da apresentação e da introdução, o livro contém treze seções, uma para cada década, da Proclamação da República aos dias correntes. Cada seção se divide em três capítulos (com exceção da última, que contém quatro), que abordam, em sequência, as perspectivas da política, do direito e da economia na década em questão. Entre os 38 autores, catorze são advogados, doze são cientistas sociais e doze são economistas.
Cada seção abre com uma página contendo uma breve cronologia dos principais eventos da década. Nenhuma das treze seções contém bibliografia. Uma flagrante exceção são as poucas referências bibliográficas ligadas às citações feitas na introdução. O leitor haveria de apreciar se (mesmo na ausência de uma bibliografia mais extensa) as seções contivessem pelo menos uma nota — comparável em tamanho à cronologia inicial — intitulada, por exemplo, “outras leituras recomendadas” (com referências aos pensadores ou formadores de opinião que marcaram cada uma das treze décadas abordadas).
As seções, separadas por ilustrações elegantes, usam fotografias e reproduções de quadros. São montagens, todas em preto e branco, com predominância da cor cinza. Em duas ilustrações, o pano de fundo difere daquele que predomina nas demais. O fundo da foto que abre a seção sobre o fim da ditadura está em negro, destacando apenas as figuras de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. E o fundo da imagem que abre a seção sobre inclusão social está em branco, destacando na parte inferior o abraço de Fernando Henrique Cardoso e Lula no dia da posse deste como presidente, em 2003.
Voltemos a 130 anos atrás e ao desgaste do governo motivado pela penúria econômica, pelo questionamento da corrupção, pela proibição de manifestações militares na imprensa e pela crescente oposição ao regime monárquico por estudantes e profissionais liberais.
A matéria
No primeiro capítulo, o cientista social Renato Lessa descreve as dores do parto e afirma que o federalismo, núcleo central do movimento republicano paulista, buscava de forma realista uma adaptação do Brasil formal ao Brasil real. Até então, o controle político e social, disperso em ilhas de poder privado, dava-se na cena nacional através do controle das eleições. O Poder Moderador, prerrogativa exclusiva do imperador, subordinava os demais poderes. A instauração da República dissipou essa capa de centralização, fez valer a força do país real e o Brasil mergulhou em uma década de incerteza.
Naquela aventura modernizadora, Rui Barbosa, detentor da pasta da Fazenda, lançou uma reforma bancária e as leis de formação e incorporação de empresas. A bolha especulativa, o crescimento da oferta monetária e a inflação explodiram. Rodrigues Alves tentaria controlar o caos a partir de 1894. Revendo esses fenômenos, o economista Gustavo Franco atribui ao romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, o melhor resumo das polêmicas do período.
Com certeza, Machado de Assis representa de forma magistral o país dividido, numa história que transcorre em meio à Abolição, ao Encilhamento (nome pelo qual ficou conhecido esse período de turbulência econômica) e à Proclamação da República. Essa obra denuncia o jogo de interesses e os dualismos falsamente contraditórios dos partidos políticos, pois ele já sabia que nada muda quando o poder troca de mãos entre indivíduos destituídos de princípios. Mas há um certo exagero na atribuição de melhor resumo das disputas (muitas delas econômicas) a um romance, por melhor que ele seja.
Nem bem terminado o parto, a saga da República brasileira se desenrola em crises que se sucedem. Em 1929, a queda do preço do café colocou em xeque a economia agroexportadora. Alguns anos de recuperação e lá veio o Estado Novo, mais conflitos, mais corrupção e o suicídio de Getúlio Vargas. Vinte anos depois… a inflação e a agitação em escalada culminaram no golpe militar de 1964. Antes de falar da ditadura que resultou daquele golpe, volto aos capítulos que discutem o Estado e o direito.
O Estado
Desde a Proclamação da República, sempre houve disputas entre intervencionistas e liberais. No começo, os constitucionalistas exaltaram as tradições antiestatistas anglo-saxônicas, enquanto os intervencionistas desejavam implementar medidas sanitaristas e o controle da economia. Em 1916, os parlamentares aprovaram o Código Civil, que refletiu o conservadorismo católico e consolidou o processo de modernização da propriedade privada.
Nos conflituosos anos 1920, longos períodos de estado de sítio responderam à inquietação social e à tensão das estruturas arcaicas que se romperam na década de 1930. Escreve o advogado Marcelo Trindade: “Uma simples informação dá boa medida do que foram os anos 1930 para o Brasil pela ótica do direito: durante a década vigoraram três Constituições, isto é, metade das que tivemos em 130 anos de República”.
Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais. A Constituição promulgada em 1934 substituiu a de 1891. A nova Carta deu status constitucional ao voto feminino de um lado e, de outro, assegurou ao Estado um crescente papel na economia. A década se fechou sob a Constituição de 1937, que preservava garantias democráticas apenas formalmente, pois elas foram de fato ignoradas pelo poder da força.
O fim da Segunda Guerra Mundial, com o colapso dos regimes fascistas, trouxe o fim do Estado Novo, e, em 1946, o país ganhou uma Constituição que instaurou uma República liberal em seus contornos fundamentais. Na década de 1950, o nacionalismo tomou feição emocional e se desdobrou em estatização progressiva. A proeminência do Executivo subtraiu em parte funções do Legislativo. O investimento de capitais estrangeiros cresceu e o direito empresarial norte-americano influenciou a cena jurídica brasileira.
A década de 1960 foi turbulenta. Como nos anos 1930, o país teve três Constituições, se considerarmos a emenda de 1969 como uma nova Carta. A Constituição liberal de 1946 valeu até 1967 e a ditatorial, de 1967 até 1969, quando uma emenda incluiu restrições ao Legislativo. A década de 1960 viu ainda dezessete Atos Institucionais que criaram normas ditatoriais por excelência. Houve censura, tortura e atentados. Cassaram-se mandatos parlamentares. Suspenderam-se os direitos políticos e a garantia do habeas corpus. O país viveu a contradição entre o arbítrio antidemocrático e o liberalismo formal necessário ao modelo econômico.
O PIB
Naqueles tempos, a despeito dos debates e das crises, os brasileiros ainda acreditavam no país do futuro, graças ao crescimento médio de 8% ao ano durante as duas décadas que precederam 1981 — divisor de águas da história econômica do Brasil. Erros de política econômica fizeram despencar as taxas de crescimento da produtividade. O foco exclusivo na hiperinflação permitiria que as distorções microeconômicas se acumulassem. E a taxa de crescimento do PIB teve morte sofrida e gradual.
Apesar da inauguração em 1998 do tripé “câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários”, nova crise assaltaria o país em 2002. A transição política coincidiu com um mundo externo adverso, e a incerteza grassou solta. As reservas internacionais muito baixas e a dívida externa alta ajudaram a complicar a transição. Em 2003, a ansiedade passou. O boom das commodities de 2004 a 2008 permitiu mais uma vez mascarar as deficiências estruturais.
Nas duas últimas décadas, pouco ou nada se fez em relação ao protecionismo e ao viés deficitário da estrutura fiscal. Nossa estrutura fiscal — com sua rigidez orçamentária e proliferação de regras constitucionais — promove um viés deficitário e uma política procíclica.
Também nas últimas décadas o custo do capital continuou alto — exceto para os eleitos — e o ambiente de negócios, hostil — exceto para os negócios com o Estado. A adoção de políticas industriais protegeu empresas ineficientes, e as lacunas da infraestrutura ficaram esquecidas. Inúmeras distorções incapacitam o investimento que aumentaria os empregos de valor adicionado mais alto, e a baixa produtividade assola todos os setores da economia. Por tudo isso, o último capítulo menciona a existência de uma longa lista de reformas a cumprir, como reduzir burocracias inúteis, simplificar o sistema tributário e melhorar o ambiente de negócios.
A memória
A partir da Proclamação da República, o país se modernizou e construiu uma sociedade capitalista urbana, diversificada e extremamente desigual. O livro traça essa trajetória através de muitos artigos independentes. Uma ideia possível para amarrá-los seria terminar com a questão que abre o livro. Ao discutir a inauguração da República, o primeiro capítulo colocou, no centro da discussão, a questão federativa. Hoje, o tema está de volta com o debate da reforma tributária e pede uma avaliação da descentralização (decorrente do pacto federativo da Constituição de 1988) e dos benefícios, custos e complexidades que lhe são inerentes.
O momento atual prolonga uma história de 130 anos de avanços e retrocessos. Com certeza, a comunicação agora se processa de forma mais rápida e abrangente do que antes, e isso tende a fazer com que a ansiedade se espalhe com mais rapidez do que no passado. A insatisfação cresce com a desigualdade e a violência aumenta a insegurança, num ambiente onde a insensatez do presidente da República alimenta expressões autoritárias e preconceituosas.
Também há o que comemorar. Os últimos trinta anos foram vividos sob o regime democrático, com plena liberdade de expressão. Mais pessoas têm melhor educação e saúde do que em décadas passadas e nossa esperança de vida aumentou. A cereja do bolo é acompanhar a história com a leitura de 130 anos. Afinal, a nação também é feita de memória.
Fonte: Quatro cinco um, 11/11/2019
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