“Presidents are not kings”, escreveu juiz federal norte-americano ao decidir (contra a vontade expressa de Donald Trump) que um ex-funcionário da Casa Branca deveria atender à convocação para depor como testemunha em investigação em andamento no Congresso. A Casa Branca vai recorrer, mas a decisão mostrou, mais uma vez, que as preocupações dos founding fathers com a importância de checks and balances, pesos e contrapesos, freios e filtros em decisões de chefes do Poder Executivo continuam vivas e operantes, passados 230 anos.
Presidentes podem muito, mas não podem tudo. Há limites à sua vontade, impostos não apenas pelos outros Poderes, mas também pela reação da opinião pública quanto a planos e intenções que afrontem em demasia valores e expectativas de parte expressiva da sociedade. Afinal, presidentes, e outras lideranças políticas, emitem poderosos sinais sobre o que são padrões de conduta e decência considerados aceitáveis na vida pública.
Vale sempre lembrar o artigo hoje clássico de Madison (em The Federalist n.º 51, de fevereiro de 1788). “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos fossem governar os homens, nem controles externos nem controles internos sobre o governo seriam necessários. Na construção de um governo a ser administrado por homens e exercido sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados e, em seguida, obrigá-lo a controlar a si próprio”.
A História registra numerosos exemplos de governos e governantes com “grande dificuldade” para controlar seus próprios instintos, paixões e interesses. Registra também tentativas de estabelecer relações diretas com a parte da população mais cúmplice de suas ilusões, incluída a ilusão da falta de limites ao exercício de seu poder. A tentação de ocupar a máquina pública com militantes fiéis e, principalmente, de utilizar as ferramentas do poder para combater os “inimigos” e intimidar vozes discordantes é mais comum do que parece.
É preciso resistir, em particular, a certa visão que neste momento aparentemente encontra ampla acolhida entre extremos do espectro político brasileiro, baseada na clássica formulação do alemão Carl Schmitt, para quem “a distinção política específica à qual ações e motivos políticos podem ser reduzidos é a distinção entre amigo e inimigo”. Para Schmitt, uma coletividade constitui um corpo político apenas na medida em que haja definido com clareza seus “inimigos”. E como mostrou Mark Lilla, para Schmitt tudo é potencialmente político: costumes morais, religião, economia, arte, cultura podem se tornar questões políticas, encontros com o inimigo, e transformar-se em fonte de deliberado, aberto e sempre renovado conflito.
Qualquer semelhança com situações que não nos são estranhas não é mera coincidência. Teremos menos de três anos à frente para tentar aprofundar esta discussão e encontrar as saídas que devem prevalecer em democracias (sem adjetivos). Saídas que deverão sempre passar pelo diálogo franco, pela resolução de diferenças e conflitos via soluções de compromisso, sem a famosa escolha binária entre o “nós e eles” que tanto mal causou e vem causando ao País.
Os mundos (e os tempos) da política não podem, nunca, ser dissociados dos da economia. Por essa razão este meu último artigo do ano não poderia deixar de mencionar a importância crucial da continuidade do esforço centrado na agenda de reformas, em particular as do setor público. Sem elas não conseguiremos equacionar nossa insustentável situação fiscal (governo federal e especialmente Estados e municípios), tampouco recuperar de forma sustentada o crescimento econômico, cuja média anual foi, no período 2011-2018, de pífios 0,7%, ante 3,25% em 1995-2010.
Já escrevi muito neste espaço sobre as raízes da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil, com ênfase nas nossas mudanças demográficas e na rapidez extraordinária de nosso processo de urbanização, sem paralelo no mundo. Esse processo gerou e gera demandas que continuam a exigir respostas de sucessivos governos, em termos de gastos de custeio e investimento nas áreas de infraestrutura física, infraestrutura social e redução de pobreza e desigualdades de oportunidades. As tentativas de resposta a elas levaram a taxas de crescimento real do gasto público muito superiores às taxas de crescimento da economia, com as implicações conhecidas sobre inflação (até o Real), além de endividamento do setor público.
A excelente e ousada entrevista com o atual governador do Rio Grande do Sul (Valor Econômico, 3/12) é imperdível para os brasileiros de boa-fé que estejam dispostos a entender quão dramática é a situação fiscal de muitas unidades da Federação. E queiram entender o que deve ser feito como inexorável ajuste, como condição para a retomada da capacidade de investimentos, da qual depende o crescimento.
Concluo com uma observação de 1994 do economista Edmar Bacha que retém surpreendente atualidade e relevância: “A resolução, sem uso da inflação, do conflito fiscal brasileiro (por fatias do orçamento público) envolve decisões políticas fundamentais sobre a composição do gasto público. O governo federal tem que transferir para outras esferas governamentais ou para o setor privado parte de suas exageradas atribuições atuais para que possa especializar-se com vantagem nas atribuições que de fato lhe cabem num modelo de desenvolvimento com inflação sob controle”.
Estamos há pelo menos 25 anos a tentar lidar com os problemas interligados do nível, da composição e da eficiência tanto do gasto público quanto da arrecadação tributária. É preciso perseverar, se quisermos realmente crescer a taxas mais altas, sem inflação e sem depender de choques externos favoráveis como os que nos ajudaram em passado recente.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 8/12/2019
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