A maré alta que veio com a lua cheia e ventos fortes atingiu 1,87 metro, inundando Veneza no dia 12 de novembro. Foi a segunda maior enchente da história. Alguém, de estatura mediana, que caminhasse pela Praça San Marco enfrentaria água perto da cintura. Os danos ainda estão sendo dimensionados.
Conhecida como “La Serenissima”, Veneza sempre se equilibrou, precariamente, entre as forças das águas dos rios e do mar que a cercam, além de enfrentar o próprio afundamento, decorrente da movimentação da placa Adriática. Como se não bastasse, a industrialização desordenada ao seu redor, o turismo predatório das últimas décadas, e mudanças climáticas que elevam o nível do mar pioraram o quadro, aumentando a frequência de inundações. É possível salvar Veneza?
A pergunta vem sendo feita há séculos, e muito já foi feito. Há mais de 300 anos foi resolvido, definitivamente, o problema de enchentes provocadas pelos três rios que desembocam na Lagoa de Veneza. Grandes obras desviaram e aprofundaram os leitos dos rios movimentando um volume de terra equivalente ao das escavações que abriram o Canal do Panamá, como relatam Barbieri e Giavazzi, em Corruzione: a norma di legge. Já a força do mar permanece indomada, e continua fazendo estragos.
O primeiro grande susto ocorreu em 4 de novembro de 1966, com a pior enchente já registrada: a maré atingiu 1,94 metro, inundando o Palazzo Ducale com 1,5 metro d’água. Dias seguidos de chuvas e enchentes provocaram comoção, no país e no exterior, pela destruição de parte importante do patrimônio artístico e cultural da cidade.
Uma grande mobilização internacional ajudou a levantar recursos financeiros e humanos para a restauração de monumentos, igrejas e demais prédios históricos. Houve rapidez e eficiência no tratamento dos efeitos da enchente, mas não na prevenção de eventos semelhantes.
Desde então, muito dinheiro foi gasto. As obras para proteger Veneza das águas do mar foram inicialmente orçadas em € 2,5 bilhões, mas já custaram perto de € 6,5 bilhões, em valores atualizados. Sofreram atrasos sucessivos, causaram vários escândalos de corrupção e ainda não terminaram.
A saga teve início em 1973 com a aprovação de uma “lei especial” transferindo para o governo central a responsabilidade da solução do problema de Veneza. Depois de uma concorrência internacional encerrada sem vencedores, a década terminou com mais uma grande enchente. Então, em 1980, uma comissão foi formada para fazer um projeto, aprovado dois anos depois.
Nascia o Mose (Modulo Sperimentale Elettromeccanico), evocando Moisés, que controlou as águas do Mar Vermelho, segundo a Bíblia. Seria um sistema de barragens móveis, com 79 módulos de aço, presos no fundo do mar que, submersos, seriam levantados com marés acima de 1,1 metro. Seria a maior obra pública já realizada na Itália e esperava-se que ficasse pronta em 1995.
Ao mesmo tempo, nascia o Consorzio Venezia Nuova, formado por um grupo de empreiteiras e empresas de projetos, cujo propósito era assumir o monopólio da execução da obra. Começou a receber trabalhos, que eram distribuídos entre os participantes, e a Justiça interrompeu tal prática em virtude da ausência de concorrência pública.
Em resposta, numa segunda “lei especial” foi incluída a possibilidade de uma única entidade jurídica ser responsável pelo estudo, projeto e execução da obra, revogando todas as disposições contrárias. Ou seja, com o apoio de Bettino Craxi e do Partido Socialista, a grande obra foi entregue a um único consórcio, sem nenhum tipo de controle, simplesmente passando a gestão do dinheiro público a um ente privado. Não poderia dar certo.
O resultado desse irresponsável regime de exceção foi desnudado nos anos 90 pela operação Mãos Limpas. Mais de 300 pessoas foram presas na região do Vêneto, sendo a maioria ligada às obras do Mose. Segundo depoimentos dos investigados, nada era feito sem um acordo entre o Partido Socialista e o Democrata-Cristão, com a anuência das cooperativas do Partido Comunista. Um importante investigado disse a jornalistas: “Isto é um massacre! Os políticos, empresários e magistrados devem fazer um acordo, caso contrário milhares serão presos”. Já ouvimos esse argumento por aqui.
Mas sabemos como a Operação Mãos Limpas foi abortada pelo sistema político que abrandou as leis para continuar a se beneficiar da corrupção. A história do Mose é um dos inúmeros testemunhos de que isso de fato ocorreu. Mudaram os nomes de alguns políticos mais vistosos – Silvio Berlusconi e Romano Prodi, no lugar de Craxi, que se exilou para fugir da prisão -, mas a maioria voltou a fazer o que sempre fez. Aliás, foi Berlusconi quem, em 2001, deu carta branca para que o projeto do Mose fosse adiante, liberando grandes somas de recursos.
As práticas continuaram as mesmas, os atrasos eram administrados para exigir sempre mais dinheiro e assim, com custos inflados e morosidade excepcional, o Mose sofreu nova devassa: em junho de 2014, uma operação de investigação sob o comando de magistrados de Veneza se debruçou mais uma vez sobre a obra.
Muitos foram presos, dentre os quais o prefeito de Veneza, acusado de financiamento ilícito de partidos, um ex-ministro que governou a região do Vêneto por 15 anos, o presidente do Consorzio Venezia Nuova, vários ministros e seus assessores, magistrados, grandes empresas e cooperativas, políticos de direita e de esquerda. Quase todos, depois de um curto período na prisão, foram libertados, como mostram Amadori, Andolfatto e Dianese, em Mose, La Retata Storica.
Passados quase 40 anos desde a aprovação do projeto, a obra do Mose está 90% pronta, e mais uma vez parada, à espera da liberação de mais recursos. A combinação de impunidade, irresponsabilidade no trato do dinheiro público e falta de transparência nas prestações de contas dos partidos políticos garantem ineficiência e corrupção nas grandes obras públicas em qualquer país. É o que vemos em Veneza, que paga, mais uma vez, a conta do custo da corrupção
Fonte: O Estado de S. Paulo, 15/12/2019
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