ENTREVISTA | MARIA CRISTINA PINOTTI, ECONOMISTA DA A.C PASTORE & ASSOCIADOS
A população clama por um País mais sólido e mais justo, oque significa criar caminhos para o crescimento sustentável, e a segurança é parte desse processo, que exige independência de atuação dos poderes
Um grau elevado de independência e eficiência do Judiciário está correlacionado com os níveis maiores de crescimento econômico, com baixa corrupção, com maior proteção dos direitos humanos e com níveis mais elevados de liberdade econômica e política, afirma a economista Maria Cristina Pinotti, que nos últimos anos vem-se dedicando a estudar o impacto de operações como a Lava Jato e a Manu Pulite para a qualidade das instituições.
Isso afeta diretamente o mercado de crédito imobiliário, como enfatiza Cristina Pinotti: “A existência de garantias sólidas, como no caso da alienação fiduciária dos imóveis, reduz enormemente o risco para o credor, permitindo que a operação seja feita com taxas de juros muito menores do que as de empréstimos a bens sem garantias”. Por isso, acrescenta, “o crédito torna-se acessível a um maior número de pessoas, aumentando o bem-estar da população”.
A economista é particularmente crítica com relação ao sistema tributário, por ela qualificado como “disfuncional”, e que “gera incerteza e insegurança para os mercados e pessoas”.
A seguir, a entrevista de Maria Cristina Pinotti à Revista do SFI:
SFI: Em livros, artigos e palestras recentes tem enfatizado a relevância da qualidade das instituições como questão chave para o desenvolvimento econômico. Como vê a receptividade das pessoas e das empresas à necessidade de o Brasil aperfeiçoar – o mais rapidamente possível – políticas públicas voltadas para a criação de um ambiente favorável ao crescimento e ao investimento?
Maria Cristina Pinotti: A população está clamando por um País mais próspero e justo. Criar caminhos para o crescimento sustentável é o maior desafio que enfrentamos, e diante do elevado grau de desigualdade de renda hoje existente, é tarefa inadiável. Passamos por uma das mais fundas recessões da nossa história, provocada por erros de políticas macro e microeconômica desde 2011, e estamos enfrentando a recuperação mais lenta desde 1900, período para o qual temos dados. A situação fiscal é dramática, com o crescimento sistemático dos gastos acima do crescimento das receitas, gerando enorme crescimento da dívida pública, que corre o risco de se tornar insustentável se além da reforma da Previdência, outras como a tributária, a do serviço público não forem feitas. Paralelamente, a população e as empresas estão ávidas por reformas que melhorem a qualidade da educação, do saneamento, da saúde, dos transportes públicos, que aumentem o bem- estar geral e a qualidade da mão de obra necessária para que as empresas sejam competitivas.
Chegamos a uma situação disfuncional, na qual a carga tributária no País é uma das mais elevadas, até mesmo dentre países desenvolvidos, e a qualidade do serviço público oferecido pelo Estado é muito ruim. A estrutura tributária atual afugenta investidores, torna nossos produtos não competitivos, gera desigualdade e corrupção, que por sua vez provoca perda na qualidade dos serviços públicos. Círculo vicioso que precisa ser quebrado pelo aprimoramento das nossas instituições políticas e econômicas. O caminho é conhecido há séculos, o difícil é desencastelar os grupos que capturaram os três Poderes e comandam a distribuição dos benefícios econômicos e políticos entre seus aliados, sem pensar no bem-estar da população.
SFI: Estudos avançados sobre a prevalência do estado de direito e do respeito ao direito de propriedade, como em livros de Acemoglu e Robinson ou de Luigi Zingales, tem mostrado como os países que fortalecem suas instituições, inclusive países em desenvolvimento, são mais prósperos do que aqueles que têm instituições mais atrasadas. Que países destacaria entre os que avançaram em políticas públicas favoráveis ao crescimento?
Maria Cristina Pinotti: É sabido que elevado grau de independência e eficiência do Judiciário está correlacionado com os níveis maiores de crescimento econômico, com baixa corrupção, com maior proteção dos direitos humanos e com níveis mais elevados de liberdade econômica e política (Rose-Ackerman & Palifka, 2016). No gráfico abaixo está a evolução do índice de Rule of Law, calculado pelo Banco Mundial 1 , para alguns países. Nota-se que o desempenho do Brasil é sofrível quando comparado com os países desenvolvidos ou com o Chile, por exemplo. Em outra pesquisa, a Transparência Internacional calcula o score de integridade dos países, que varia entre 0 e 100, em ordem crescente de integridade. Encontramos quadro semelhante, com o Uruguai atingindo 70; o Chile 67; a Polônia 60; a Georgia 58; e o Brasil 35. Esse quadro mostra quão distantes estamos da segurança jurídica necessária para a construção de um país próspero e justo. Não basta ter boas leis, é preciso que elas sejam eficientemente aplicadas e valham para todos.
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1 O indicador de “Rule of Law” construído pelo Banco Mundial capta as percepções da extensão da confiança e da obediência dos indivíduos em relação às leis e regras existentes e, em particular, à qualidade dos mecanismos de observância dos contratos, aos direitos de propriedade, às forças de ordem e aos tribunais, assim como a probabilidade que ocorram crime e violência.
SFI: Considera que o combate à corrupção, que vem estudando tanto na Itália da Mani Pulite como no Brasil da Lava Jato, terá um impacto relevante no fortalecimento das instituições brasileiras, com ênfase no aumento da segurança jurídica? Mais ainda, diria que a luta contra a corrupção anda de mãos dadas com a luta pelo fortalecimento da segurança jurídica no Brasil?
Maria Cristina Pinotti: Tanto a operação Mani Pulite na Itália, no início da década de 1990, como a Lava Jato aqui no Brasil, a partir de 2014, mostraram que a grande corrupção havia se tornado a regra do jogo, envolvendo grandes empresários e membros dos três Poderes. Avanços institucionais permitiram que as operações existissem, mas elas per se não garantem que o país melhore suas instituições, dado que seu papel é o de investigar e revelar o que existe de errado, e sugerir as punições. Cabe ao Judiciário julgar e aplicar as penas. Cabe ao Legislativo mudar as leis para melhor, e não abrandá-las para proteger seus pares e amigos.
No caso italiano, em pouco menos de três anos mais de cinco mil pessoas foram investigadas, e dentre elas estavam quatro primeiros-ministros; uma dúzia de ministros de Estado; mais de 150 parlamentares (antigos ou com cargos na época); secretários de partidos; membros de governos regionais e municipais; empresários, funcionários de empresas públicas, juízes. Entretanto, a operação foi abortada por uma forte reação do sistema político, que abrandou leis, dificultando a identificação e punição dos crimes de corrupção, contaminando o funcionamento e a confiança no Judiciário e demais instituições. É só olhar no gráfico anterior o que aconteceu com o desempenho da Rule of law na Itália a partir do ataque à Mani Pulite, em 1994, quando mudaram as leis para proteger os implicados nos crimes de corrupção. Ou seja, lá, a sociedade não foi capaz de aprimorar as instituições, a corrupção continuou, o país parou de crescer e se distanciou dos parceiros europeus. Aqui, depois de várias tentativas frustradas durante os últimos cinco anos, estamos presenciando uma forte onda a favor da impunidade dos poderosos, através da alteração das leis com o objetivo de dificultar a identificação e a punição de crimes de corrupção, capitaneada pelos expoentes dos três Poderes. A população, que não se envolveu em corrupção – o Brasil tem o menor índice de pequena corrupção da América Latina –, continua ao lado da ética, exigindo mudanças que promovam a integridade. Ao mesmo tempo, as lideranças políticas e os níveis superiores de justiça caminham na direção contrária, provocando enorme dissociação entre a população, os seus representantes e o Judiciário. Podemos sair desse episódio com instituições mais sólidas ou mais fracas, a depender do sucesso dessa revanche do sistema corrupto. País algum sai igual depois de tomar conhecimento do que foi exposto pela Lava Jato, Greenfield, Zelotes entre outras. Ou as instituições são aprimoradas para evitar que episódios semelhantes ocorram, ou se deterioram, com impactos sobre o futuro da economia e o grau de integridade do seu povo.
SFI: Como avalia o grau de segurança jurídica entre nós, em especial e se passível de avaliação a partir de seus estudos, no que diz respeito aos mercados?
Maria Cristina Pinotti: Cito dois exemplos opostos que interferem diretamente sobre o mercado financeiro: o sistema tributário e o papel do Banco Central. O Brasil tem hoje um sistema tributário inaceitável! Ele foi sendo desvirtuando ao longo do tempo, conforme a necessidade de recursos pelos governos e o volume ou poder das pressões de setores empresariais. A complexidade e opacidade das leis tributárias torna a judicialização uma regra seguida por aqueles que dispõem de recursos para pagar bons advogados, e uma fonte de corrupção para pleitos de leis escritas ou interpretadas sob medida em benefício de pessoas ou setores. Sabe-se que um bom sistema tributário não deve provocar distorções alocativas e ser transparente. O nosso não atende a nenhuma das duas características, é disfuncional, e gera incerteza e insegurança para os mercados e pessoas.
Na direção oposta encontramos o Banco Central, grande responsável pela solidez e eficiência do sistema financeiro. Autarquia com décadas de tradição, composta por funcionários selecionados por concorridos concursos, com treinamento contínuo aqui e no exterior, e pautada pela meritocracia, cumpre com eficiência e independência seu papel de regulador do mercado financeiro, além de conduzir a política monetária, no regime de metas de inflação. Os mercados financeiros vivem entre a segurança da eficiência do Banco Central e a insegurança da ineficiência do sistema tributário.
SFI: Quanto ao crédito imobiliário, note-se que duas décadas após a criação do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel que foi o grande responsável pela multiplicação do financiamento imobiliário a partir dos anos 2000, ainda existem ações que buscam contestar esse instituto. Como tratar controvérsias desse tipo, que também permeiam outros institutos jurídicos?
Maria Cristina Pinotti: É surpreendente o grau de desinformação que permeia questionamentos como o referido na pergunta. Sabe-se que a existência de garantias sólidas, como no caso da alienação fiduciária dos imóveis, reduz enormemente o risco para o credor, permitindo que a operação seja feita com taxas de juros muito menores do que as de empréstimos a bens sem garantias. Por isso, o crédito torna-se acessível a um maior número de pessoas, aumentando o bem-estar da população. Com efeito, segundo os dados do Banco Central, as taxas cobradas nos empréstimos imobiliários se aproximam hoje de 9% ao ano, enquanto que as dos empréstimos consignados, que têm como garantia a folha de pagamento do empregador, chegam a 22%, e a de empréstimos de veículos, ainda que com alienação fiduciária, a 20%. Já nos empréstimos feitos sem garantia alguma, como no caso do crédito pessoal não consignado, encontramos taxas que atingem 120%.
Qualquer fragilização da garantia que colateraliza o empréstimo aumenta o seu risco, tornando-o mais caro, e expulsando consumidores do mercado imobiliário. Essa é uma discussão que não pode ignorar nem os dados e nem as regras de funcionamento dos mercados.
SFI: Em que medida os Poderes Legislativo e Judiciário poderiam contribuir para o aumento da segurança jurídica em geral e do crédito, em particular?
Maria Cristina Pinotti: A Constituição de 1988, escrita logo após o fim do regime militar, no lugar de se ater aos princípios gerais normalmente presentes em constituições de cunho liberal, tentou responder à maior parte das demandas feitas pela sociedade no momento, mas foi incapaz arbitrar conflitos, estabelecer prioridades, deixando que boa parte das disputas fosse resolvida posteriormente, quase como se tivéssemos uma constituinte permanente nas mãos do STF e do Congresso. Isso gera enorme insegurança e parte da judicialização observada posteriormente vem de conflitos não solucionados em 1988. O quadro vem piorando, por várias razões, como demonstra a existência de mais de uma centena de emendas à Constituição em apenas 30 anos de existência. Parte do problema vem da progressiva queda da qualidade do Legislativo.
A permissão, em 1994, de financiamento empresarial de campanhas praticamente sem restrições e controles eficazes, aliada à queda da cláusula de desempenho dos partidos, prevista na Constituição, mas suspensa pelo STF, levou à maior fragmentação partidária existente no mundo democrático. Tal quadro dificultou a construção de consensos no Legislativo, desembocando no “presidencialismo de cooptação”, visto em operação com todo vigor no mensalão e na Lava Jato. Ambas as regras foram alteradas pelo STF nos últimos anos, houve importante renovação na Câmara e no Senado nas últimas eleições, mas sem a pressão da sociedade a tendência é que interesses não republicanos tomem, novamente, conta da agenda. Quanto ao Judiciário, vemos uma fratura entre a base e o topo. Meritocracia e acesso ao cargo através de concorridos concursos dão mais independência e competência à base do sistema, enquanto que as indicações políticas para os membros das instâncias superiores tendem a tornar parte de seus ocupantes menos independentes. É preciso repensar as regras de acesso, de qualificação e de permanência dos membros dos tribunais superiores. Paralelamente, observa- se que por um defeito de construção ou de aplicação das leis, quem pode pagar bons advogados tende a escapar de punições, mesmo em caso em que o réu confessa um assassinato, por exemplo. Ou seja, temos uma Justiça que pune os mais pobres, que não têm acesso a bons advogados. É preciso pensar no desafio de tornar a Justiça mais eficiente, rápida e previsível.
Enquanto houver sensação de impunidade, não haverá confiança na Justiça e nas leis. Além do exposto acima, o mercado de crédito enfrenta a dificuldade decorrente da enorme concentração de renda presente no País. Parcelas mais carentes da população não têm garantias a oferecer, muitas vezes estão empregadas precariamente, e por isso enfrentam taxas de juros nos empréstimos pessoais que são múltiplos dos cobrados no consignado, por exemplo. Neste caso, só o crescimento econômico sustentado pode reduzir o risco e os juros cobrados neste enorme segmento.
SFI: Que medidas elencaria como essenciais no dever de casa dos reguladores?
Maria Cristina Pinotti: Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a importância da independência e autonomia das agências reguladoras, em geral, que têm a função de fiscalizar e regular setores sujeitos a falhas de mercado, como diante da existência de algum grau de poder de monopólio envolvido (estradas, aeroportos, energia, etc). Entre nós, em vários setores as agências foram sendo cooptadas e aparelhadas por partidos políticos, desvirtuando seus propósitos. Agências independentes, com corpo técnico de qualidade aumentam a segurança jurídica do País. Especificamente com relação ao mercado financeiro, a regulação deve impedir comportamentos inadequados de agentes dos mercados para proteger os investidores, evitando que sejam manipulados ou enganados. Além disso, deve zelar pela solvência dos intermediários financeiros e evitar riscos sistêmicos. A integração do sistema financeiro internacional exigiu que a sua regulação ocorresse a nível internacional, consubstanciada nos acordos de Basiléia I e II, o que uniformizou e elevou o grau de confiabilidade do sistema.
Além disso, após o ataque terrorista às torres gêmeas em 2001, o financiamento ao terrorismo internacional passou a exigir regras mais duras e maior integração dos países contra lavagem de dinheiro, reforçando as políticas que também visavam evitar o tráfico de drogas, de armas, de pessoas e a ocorrência de corrupção. Com avanço da tecnologia da informação, os desafios se renovam a cada dia, exigindo aprimoramento permanente dos órgãos de controle e cooperação internacional em tempo real. Se há inúmeras evidências de bom funcionamento dos mercados financeiros internacionais – volume de empréstimos a empresas e pessoas, segurança e rapidez das operações, etc – a crise financeira de 2007/08, cujos custos ainda levarão anos para ser adequadamente aferidos, mostra que a desregulação apressada do mercado financeiro traz consigo um risco gigantesco. O grande desafio é a sociedade criar mecanismos que se contraponham de maneira eficaz ao enorme poder político que o sistema financeiro costuma ter.
Fonte: Revista SFI
Por: Fabio Pahim Jr.
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.