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17 anos depois

‘Sua análise dava suporte a editorial crítico’

“Pergunto-me o que lhe causaria maior assombro: as pautas novas e entusiasmantes que brotam de avanços notáveis na economia, ou as pautas velhas e desalentadoras que seguimos pelejando para transpor

Meus últimos registros do byline de Celso Pinto no Valor Econômico são de 22/5/2003. Além de sua coluna regular das quintas-feiras, ele assinava naquela edição uma breve análise sobre a evolução da taxa de juros real ex ante – análise esta que, por sua vez, dava suporte a um editorial expressamente crítico da decisão do Copom, na véspera, de manter a taxa Selic no pico de 26,5% que atingira em fevereiro. Eu andava prestando particular atenção ao noticiário sobre política monetária, pois minha indicação para a diretoria do Banco Central (juntamente com a de Afonso Bevilaqua) seria anunciada naquele mesmo dia.

Não tivesse Celso Pinto ficado impedido de realizar seu trabalho jornalístico nos 17 anos seguintes, suspeito de que eu e ele teríamos tido, como naquele momento, repetidas divergências sobre a política de juros do Copom. Mas não tenho dúvidas de que ele, como eu, estaria registrando e celebrando a esta altura o declínio que as taxas de juros sofreram desde então. Não vem ao caso aqui se, em meio a medidas imprescindíveis de consolidação fiscal e parafiscal (leia-se, nesta segunda categoria, BNDES) e um ambiente global de juros extremamente baixos, os juros domésticos acabaram caindo ainda mais graças à credibilidade conquistada mediante teimosias conservadoras do Copom, como eu acredito, ou se caíram a despeito desse conservadorismo, e, por causa dele, de modo tardio. O fato é que os juros genuinamente despencaram. Naquele comentário de maio de 2003, a queixa de Celso Pinto era de que os juros ex ante de um ano estavam alguns pontos percentuais acima dos 12-13% então costumeiros após o advento do câmbio flutuante; hoje, essa mesma taxa é de 0,42% ao ano! E, refletindo confiança de que parte da queda dos juros é duradoura, taxas nominais de 10 anos, por exemplo, que sequer tinham representatividade em 2003 e andavam na casa dos 10-12% em 2016-2018, recuaram para a vizinhança dos 7% ao ano desde meados de 2019.

Talvez mais interessante do que distinguir as causas seja conjecturar sobre as potenciais consequências desse fenômeno, em particular para o funcionamento da intermediação financeira. Na primeira década deste século, à estabilidade de preços, proporcionada de início pelo Plano Real e depois paulatinamente solidificada pelo regime de metas de inflação, juntaramse mudanças regulatórias – destaque para a alienação fiduciária e para o crédito consignado – para deflagrar uma primeira grande mudança na paisagem creditícia no país. Mesmo sem incluir na conta quaisquer excessos posteriores à crise financeira global, o crédito bancário expandiuse de 25% para uns 40% do PIB, e o crédito imobiliário, que patinava entre 1 e 2%, cresceu para cerca de 9%.

Podemos estar diante de um novo capítulo dessa mesma estória, onde os protagonistas serão outros, mas o enredo promete seguir uma estrutura semelhante. O papel que a ancoragem da inflação desempenhou pelo lado macroeconômico caberá desta vez à queda dos juros reais propriamente ditos, com impacto ainda mais direto na capacidade de endividamento, na qualidade do crédito, nos preços dos ativos, e na dinamização dos mercados de capitais. Pelo lado regulatório, no papel outrora confiado à alienação fiduciária e ao consignado, novos aperfeiçoamentos no uso de imóveis como garantia de empréstimos e na indexação de contratos de financiamento imobiliário – lembrando que o imobiliário segue sendo a linha comparativamente mais atrofiada do nosso mercado de crédito, e dá à nossa razão crédito/PIB ampla margem para galgar um novo degrau. E agora o fator tecnológico e concorrencial parece muito mais potente do que foi há quase duas décadas: basta contemplar o fabuloso alcance das novas tecnologias de distribuição de serviços financeiros, já abraçadas inclusive por uma supervisão bancária mais experimentalista como alavancas para redução de custos operacionais e estímulo à concorrência, e compará-lo com as apostas bem mais modestas e convencionais que os reguladores tiveram a chance de fazer, lá em 2003, na promoção das cooperativas de crédito ou na tentativa longamente frustrada de instituir o cadastro positivo. Se juros tão mais baixos e as inovações tecnológicas parecem descortinar um admirável mundo novo na comparação com o que Celso Pinto e todos nós vislumbrámos nos idos de 2003, a mesma retrospectiva chega a ser enervante pelas recorrências, pela nossa dificuldade de virar certas páginas e seguir adiante. Cala fundo, numa recapitulação ligeira, a persistente atualidade de temas que povoavam o noticiário econômico naquele mês de maio: se a legislatura em curso, não obstante a barragem de críticas à articulação parlamentar do governo, aprovaria uma reforma coerente dos sistemas previdenciários nacionais e subnacionais; se passaria ao mesmo

tempo uma reforma tributária da qual fizesse parte a unificação de impostos indiretos estaduais; se não seria melhor aprová-las primeiro para só então iniciar démarches congressuais em prol da autonomia legal do Banco Central; se o “sistema S” não mereceria um redesenho profundo de seus mecanismos de financiamento e governança; tudo isso enquanto o Kirchnerismo subia ao poder na Argentina rejeitando o receituário econômico ortodoxo e a epidemia de SARS começava a se estabilizar na China e a pipocar para valer em outras partes do mundo.

Se Celso Pinto abrisse por estes dias as páginas do seu Valor Econômico, passados 17 anos, pergunto-me o que lhe causaria maior assombro: as pautas novas e entusiasmantes que brotam de avanços notáveis na economia, ou as pautas velhas e desalentadoras que seguimos pelejando para transpor?

Fonte: Valor Econômico

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Eduardo Loyo