Para o economista-chefe do Itaú Unibanco, tarefa primordial da autoridade monetária no momento é prover liquidez ao mercado
O economista-chefe do Itaú Unibanco, Mario Mesquita, diz que o aumento dos poderes do Banco Central (BC) para atuar no mercado, incluindo a compra de títulos privados, é necessário e ajuda a combater os efeitos da crise do coronavírus, mas ele destaca a importância de esse tipo de faculdade ser bem limitada na legislação para impedir um eventual mau uso no futuro.
“Acho muito importante que as condições que permitem esse tipo de atuação do Banco Central sejam bem explícitas, bem claras, e que sejam só em momentos realmente excepcionais”, afirma Mesquita. “As travas que temos hoje não estão aí por acaso. No passado, tínhamos uma simbiose entre BC e Tesouro que contribuiu para aquela grande inflação que tivemos no Brasil durante muito tempo.”
Mesquita refere-se ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC) anunciado na sexta-feira, que permite que a autoridade monetária compre títulos privados para dar liquidez ao mercado de capitais. Hoje, isso é expressamente vedado pela Constituição.
Embora a compra de ativos pelo BC se assemelhe aos programas de expansão quantitativa (QE, na sigla em inglês) adotados por bancos centrais de países desenvolvidos, Mesquita não considera que o objetivo da nossa autoridade monetária seja estimular a demanda. Para ele, uma diferença fundamental é que, mundo afora, os juros nominais estão perto de zero, enquanto que por aqui ainda há espaço para eventualmente baixá-los.
De qualquer forma, a PEC pode criar instrumentos para que, caso no futuro os juros sejam reduzidos a zero no Brasil, o Banco Central possa fazer operações de expansão quantitativa.
Mesquita diz que, nesse momento, a tarefa primordial do Banco Central não é cortar os juros básicos, mas prover liquidez ao mercado e fazer o crédito chegar na ponta. Um exemplo disso, afirma, é a medida anunciada na sexta-feira em que o Tesouro coloca recursos públicos para viabilizar o financiamento bancário a pequenas empresas. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Como o sr. avalia as medidas anunciadas pelo Banco Central para financiar folhas de pagamento e para comprar títulos privados?
Mario Mesquita: Os autônomos estão sendo atendidos diretamente com o pacote fiscal. Provavelmente vai se usar a tecnologia de transferência de recursos da Caixa Econômica Federal, que tem muita capilaridade, sabe fazer isso por causa do Bolsa Família. O financiamento à folha de pagamentos vai lidar com o empregado formal das pequenas e médias empresas. Tem também as grandes empresas, que passaram a se financiar, mais recentemente, de forma mais intensa no mercado de capitais. O conjunto cobre em tese o setor empresarial e deve contribuir para manter o emprego, se avançar rápido.
Valor: A velocidade de implementação é importante?
Mesquita: Será importante fazer isso o mais rápido possível. Estamos chegando ao final do mês, período de folha de pagamento de salário, as empresas tendo um baque grande de receitas. É possível que já tenha algumas com dificuldades. Se deixar para outra rodada de fechamento de folha de pagamentos, de abril, a coisa fica mais complicada ainda. Um número maior de empresas pode ter dificuldades.
Valor: E a PEC que autoriza a compra de títulos privados?
Mesquita: É bastante inovadora. Ela ataca algumas travas para atuação do Banco Central, que historicamente limitavam muito o poder em certos momentos de crise. Não inviabilizava a atuação, pois o Banco Central encontrou ao longo dos anos formas de gestão de crise. A PEC pode dar mais flexibilidade em momentos de crise, por isso ajuda. Acho muito importante que as condições que permitem esse tipo de atuação do Banco Central sejam bem explícitas, bem claras, e que sejam só em momentos realmente excepcionais. As travas que temos hoje não estão aí por acaso. No passado, tínhamos uma simbiose entre BC e Tesouro que contribuiu para aquela grande inflação que tivemos no Brasil durante muito tempo. Para minimizar esse risco, é claro que a lei deve prever que isso só pode acontecer em circunstâncias muito excepcionais, daquelas que acontecem uma vez ou outra a cada geração. Nada pode ser decidido automaticamente. A proposta dá ao Congresso a responsabilidade de, primeiro, decretar que a situação é de calamidade, para que depois a flexibilidade do Banco Central aumente. Acho que isso é muito importante.
Valor: Tem que ser excepcional para evitar o mau uso da regra?
Mesquita: O BC tem sido muito proativo, muito criativo. Realmente a atuação está excepcional. Tem que ser assim mesmo na crise. Essa medida é transformacional, só que tem essa cautela. Não pode ser permanente. Você pode ter no futuro um governo e um Banco Central que resolvam financiar de forma monetária o déficit público. Uma política a la anos 1970, que deu errado.
Valor: Essa é uma medida para fornecer liquidez ao mercado ou já é um instrumento não convencional de política monetária para estimular a economia?
Mesquita: Eu encaixaria mais como liquidez e normalização dos mercados do que como algo que vai ser usado recorrentemente para estimular a economia. Não acho que o Banco Central vá passar a usar a expansão quantitativa por um período longo de tempo. É realmente para poder injetar liquidez nos mercados nos momentos de alto estresse, definidos pelo Congresso como calamidade. Por que os países maduros tiveram que fazer a expansão quantitativa prolongada? Porque eles chegaram na taxa de juros zero. A gente não chegou à taxa de juros zero. Se um dia — as coisas estão andando muito rapidamente — a gente chegar na taxa de juros nominal zero, aí a gente vai ter que repensar os instrumentos da política monetária. O arcabouço não muda. Você tinha a meta de inflação antes, continua a ter nos países maduros, o que mudou foi o método para perseguir essas metas.
Valor: A mudança na forma como as empresas se financiam, com o recuo do BNDES e o protagonismo do mercado de capitais, está afetando a forma como o Banco Central atua no mercado para dar liquidez?
Mesquita: Na gestão de liquidez do dia a dia, o Banco Central não consegue atuar diretamente no mercado de crédito privado. Ele atua de forma muito indireta, mudando as condições ambientais, para que isso influencie o mercado de crédito privado. Com essa possibilidade de comprar títulos privados, o BC pode entrar diretamente. Ele agiliza a gestão de crise e de liquidez neste mercado. O que temos hoje? O Banco Central pode inundar os bancos de liquidez na expectativa de que, com isso, a taxa de juros de mercado caia, o que vai acabar favorecendo o financiamento das empresas que vão ao mercado de capitais. Vai acabar favorecendo o preço dos títulos das empresas no mercado de capitais. É um caminho muito mais tortuoso e indireto do que o BC ir lá e comprar o título.
Valor: E como isso vai funcionar na prática?
Mesquita: Esse é um ponto interessante. Como o Banco Central vai comprar, quando ele vai comprar? Quanto tempo vai manter esse título na carteira? E se o BC comprar e o preço do título cair? E se o preço subir? Ele vai ter um lucro? Se comprar e o preço cair, vai ter um prejuízo? Isso tudo vai ter que ser regulado depois. Na minha experiência, os órgãos de controle e o Congresso sempre ficam olhando muito quando o Banco Central tem um resultado grande, seja positivo ou negativo.
Valor: E sobre a compra de dívida pública pelo Banco Central? Não seria a emissão monetária para financiar o Tesouro?
Mesquita: Fica mais próximo do mundo da expansão quantitativa. Para não configurar isso, tem que ser compras por prazo curto, em períodos excepcionais, para não cair nisso que você está falando. Na expansão quantitativa feita no exterior, os bancos centrais compram títulos públicos ao longo da curva para fazer com que a curva inteira fique próxima de zero, mais baixa o possível.
Valor: O Banco Central não deveria estar baixando os juros de forma mais agressiva?
Mesquita: A taxa de juros ajuda, mas não acho que nesse momento é o principal instrumento. Faz muito mais sentido criar as condições que favorecem o financiamento da folha de salários das pequenas e médias empresas que vão perder receita com essas operações de distanciamento social. Faz muito mais diferença do que um corte mais agressivo da taxa Selic agora. Também acho que, como o Banco Central apontou, se você corta a Selic mais agressivamente num momento de estresse, as condições financeiras podem nem ser relaxadas. E aí você cortou e não atingiu o seu objetivo. Uma vez a situação dos mercados se acalmando, o Banco Central já sinalizou, na nossa interpretação, que vai continuar cortando taxas de juros. Mas cortar a Selic em 100 pontos- base não vai mudar muito o apetite das instituições financeiras de financiarem a folha de salário das empresas nas condições atuais. Não é esse o grande divisor de águas.
Valor: E por que o Brasil é diferente nesse aspecto dos Estados Unidos, que cortou os juros para perto de zero rapidamente?
Mesquita: A gente também cortou. A taxa de juros, em termos reais, está em zero. De repente, até negativo. Os Estados Unidos cortaram os juros, acreditando que agindo assim consegue evitar uma queda maior do PIB. Acho que não vai conseguir. Temos a expectativa de que o PIB dos Estados Unidos caia cerca de 10% no segundo trimestre. Não vai ser esse corte de juros que vai impedir isso. Os Estados Unidos vêm também com uma política fiscal bastante agressiva.
Valor: Qual é o seu cenário para a taxa de juro?
Mesquita: A gente prevê uma queda adicional, para 3,25% ao ano. Olhando de hoje, não está certo que ela vai acontecer necessariamente na próxima reunião do Copom. Pode ser, vai depender do mercado. Com um mercado mais positivo, pode ser na próxima reunião, com o mercado mais estressado, talvez adie para a reunião seguinte. Tem o risco de os juros caírem mais? Se o choque desinflacionário se estender, aí é possível cair mais.
Valor: O BC tem mencionado as condições financeiras como um fator que restringe os cortes de juros. Em que medida essa preocupação está dentro do arcabouço do regime de metas de inflação?
Mesquita: A alteração das condições financeiras é parte do mecanismo de transmissão da política monetária. Então, você toma decisões de política monetária para afetar as condições financeiras, de uma forma que você acha que vai contribuir para atingir as metas de inflação. Não podem ser — e acho que não são, no caso do BC — um fim em si mesmo. O que acho que o BC está dizendo é que vê um cenário que precisa de condições financeiras mais estimulativas para atingir a meta de inflação. No momento em que a gente começar a ver, e isso não aconteceu, que as condições financeiras por si só passam a ser o principal elemento no processo decisório, poderíamos dizer que existe um conflito. A gente ainda não chegou nisso. É como aquele debate muito comum sobre o papel da taxa de câmbio. O BC está reagindo à taxa de câmbio? Não, ele leva em consideração a trajetória do câmbio pelo impacto que tem na inflação.
Valor: Em que medida o aperto nas condições financeiras reflete as nossas dificuldades políticas para aprovar reformas?
Mesquita: Isso é importante, afeta de duas formas. Gera prêmio de risco. O aumento da incerteza fiscal gera um aumento de prêmio de risco. E, algo que o Banco Central também mencionou nos seus documentos, pode ocasionar uma elevação da taxa neutra, caso a gente acabe abandonando o projeto de médio prazo de ajuste fiscal. Ninguém vai ser radical ao ponto de insistir que você persista no ajuste fiscal depois de um choque, de uma calamidade como essa. A gente tem que passar em 2020 por um período de expansão fiscal. Na verdade, a PEC do teto de gastos já incluía uma cláusula de escape exatamente para esse tipo de situação. A gente não imaginava nem esperava que essa cláusula viesse a ser explorada tão rapidamente, mas está sendo. Não vejo problema nenhum em você ter um aumento até grande do déficit primário neste ano, desde que seja de natureza temporária. O que não deve fazer é perenizar aumentos de gastos para reagir a um evento que é trágico para muitas famílias, sério, mas que tende a ser temporário. Acho que quando você vê a abertura das taxas bem longas, de certa forma reflete incertezas, não tanto sobre a magnitude da situação fiscal em 2020. Acho que o mercado aceita uma expansão fiscal grande neste ano. Acho que a incerteza maior é o quão persistente é a natureza dessa expansão.
Valor: O seu cenário é de uma recuperação forte no ano que vem?
Mesquita: É de crescimento perto de 5%, mas é o efeito base, porque cerca de 3% disso aí é carrego. É só a normalização. Não é um crescimento que deve ser visto como algo tendencial, simplesmente é fruto de uma normalização. O crescimento mesmo é de 2%, de 2,1%, uma coisa assim. Mas tem um grande porém. A intensidade da queda do PIB neste ano vai depender de quanto tempo vai demorar a normalização. Se a gente tiver uma normalização a partir de julho, no terceiro trimestre, aí o PIB vai ficar entre queda de 0,5% e queda de 1%. Nossa projeção é queda de 0,7%. Se a normalização ficar para o último trimestre do ano, aí você já está falando em uma queda do PIB mais intensa neste ano, de 3% ou 3,5%. Isso é, se a gente não tiver uma piora permanente das condições financeiras, se o risco fiscal não se deteriorar de forma persistente.
Por Alex Ribeiro
Fonte: Valor Econômico
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