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Nexo entrevista os profs. Carlos Ari Sundfeld e Gustavo Binenbojm sobre competências do Governo Federal em meio à crise do coronavírus

Bolsonaro tem poderes legais para determinar a reabertura do comércio por decreto?

Gustavo Binenbojm A Constituição estabelece que, tanto no plano legislativo quanto no plano administrativo, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios compartilham poderes e responsabilidades em relação à saúde pública. No que se refere ao comércio local ou regional, a Constituição atribui aos municípios competência para tratar do interesse local, e, aos estados, competência residual para tratarem de tudo o que não é competência da União e dos municípios.​

Não bastasse a dicção expressa da Constituição, o Supremo Tribunal Federal deferiu liminar ao PDT para interpretar a lei 13.979/2020 [sobre medidas de combate à pandemia] conforme a Constituição. O ministro Marco Aurélio esclareceu que o exercício das competências federais pelos diferentes órgãos da União não exclui as competências constitucionais dos demais entes federativos para o combate à pandemia. A União tem competências em matéria de normas gerais, em matéria de interesses nacionais. Ela pode decidir, por exemplo, sobre o fechamento de fronteiras ou regular quais produtos não poderão ser exportados ou quais deverão ter sua importação garantida.

No que se refere ao comércio de âmbito regional ou local, essas competências são alocadas pela Constituição nos estados e nos municípios, porque dizem respeito ao interesse regional ou local. Os municípios e os estados têm competência para regular o funcionamento do comércio local, em defesa da saúde pública das populações locais e regionais. Não me parece que o presidente da República possa, por um decreto, determinar a reabertura desses comércios.

Carlos Ari Sundfeld A Constituição deu competência para estados e municípios também em matéria de saúde, para atendimentos dos interesses regionais e locais. Assim, se uma crise exigir medidas de isolamento social, estados e municípios podem tomar essa decisão autonomamente, ainda que a União não tome, seja por ter uma outra visão ou pelo fato de a questão não ser nacional. E a União não tem a possibilidade de impedir que eles façam. ​

Do ponto de vista legal, a lei federal editada especificamente para a crise do coronavírus dá ao presidente da República a possibilidade de definir por decreto quais são as atividades essenciais que têm de ser mantidas abertas. No entanto, a ideia de atividade essencial é para garantir que o país funcione. O presidente da República não pode definir tudo como essencial, até porque a própria lei atribuiu aos estados e municípios competência para adotar medidas de isolamento. Se o presidente definir tudo como essencial, o presidente estará fazendo o oposto do que a lei manda. Isso seria uma fraude à lei.

O presidente tem poder para definir o que é atividade essencial? Ele deve respeitar algum parâmetro já existente, como o rol de atividades essenciais determinado pela lei de greve?

Gustavo Binenbojm Não acho que a lei de greve prevaleça sobre a 13.979, a lei da quarentena [editada em fevereiro de 2020, atribui ao presidente a competência de definir atividades essenciais]. Porque essa lei é não apenas posterior à lei de greve, como também mais específica para a situação da pandemia do coronavírus. Então prevalece essa lei agora, e o rol de atividades que Bolsonaro define é válido. ​

O problema é que essa competência do presidente da República não é uma competência exclusiva. A lei da quarentena, como já foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, dá margem a soluções nacionais para problemas de dimensão nacional, mas também permite soluções regionais e locais, por parte de governadores e prefeitos, para problemas que tenham dimensão regional ou local. E essa compreensão democrática do federalismo do Brasil que parece faltar ao presidente Bolsonaro.

Carlos Ari Sundfeld A lei de greve é um parâmetro, mas não acho que faça sentido dizer que essencial é só aquilo que a lei de greve estabeleceu, senão a lei do coronavírus não teria dado ao presidente da República competência para, em função das circunstâncias, definir outros serviços que a lei de greve não previu como essenciais. Ele tem um poder de adaptação da ideia de atividade essencial. Essa competência é válida, está prevista por uma lei nacional. ​

No entanto, atividade essencial é o que tem a ver com o funcionamento material da sociedade, do país. Lotéricas, por exemplo, podem ser consideradas atividades essenciais porque hoje são verdadeiros postos bancários pulverizados pelo território sobretudo nas comunidades mais carentes, em locais mais afastados do centro. Por outro lado, atividades religiosas nada têm a ver com essa definição. Até porque os templos podem atender aos seus fiéis por meios virtuais, como já estão fazendo. Defini-los como essenciais, portanto, é uma extrapolação e um abuso óbvio da competência.

Como o senhor avalia esse choque entre presidente e governadores sobre o que deve ou não permanecer aberto durante o enfrentamento à pandemia?

Gustavo Binenbojm A falta de segurança jurídica na gestão pública é um problema em si. Tão grave quanto insensibilidade social, tão grave quanto a improbidade, porque gera efeitos perversos em termos de ineficiência e de perda de recursos. Mas no caso da saúde pública é mais grave ainda porque uma ação dessa, descoordenada, impensada, pode ter um custo muito alto em termos de vidas humanas. ​

Sabemos que o problema da economia realmente é sério e também pode gerar desemprego, fome em massa, mas a flexibilidade federativa, com o respeito às competências dos estados e municípios, é parte da estratégia institucional do país, de dimensões continentais, para lidar com um problema grave como o coronavírus. Se o Brasil tiver, daqui a um ou dois meses, áreas isoladas, não fará sentido um decreto nacional que diga “abre tudo” ou “fecha tudo”. O que faz sentido é que os governos locais avaliem se têm ou não necessidade de manter seus comércios fechados.

Carlos Ari Sundfeld Primeiro ponto: numa situação de crise que nunca se viveu, há um grau de insegurança jurídica inevitável. Tem a ver com a novidade. Tudo o que é muito novo e muito amplo acaba tendo um alto teor de insegurança, de grande repercussão. Isso é natural numa situação dessas. ​

Segundo ponto: a insegurança jurídica é um fenômeno mais amplo no Brasil. O país está tentando amadurecer seu sistema de Justiça, e ainda são comuns ações, propostas pelas próprias instituições do sistema, sem qualquer fundamento jurídico, que buscam promover um verdadeiro saque judicial do Estado. Recentemente, por exemplo, uma ação pretendia congelar 500 bilhões do Orçamento federal para o combate ao coronavírus. Esses absurdos acontecem por diversos motivos: por incompetência, por ligações partidárias, pelo fato de os agentes envolvidos superestimarem sua capacidade de fazer o bem, etc.

Terceiro ponto: o presidente da República é hoje a maior autoridade sabotadora da segurança jurídica no Brasil. Se alguns agentes do sistema de Justiça se põem a tentar fazer uma confusão no país, imagina o presidente da República assumir essa postura sabotadora da estabilidade, da segurança, do equilíbrio. É o que ele tem feito, com vaivéns e ameaças.
Se o presidente editar decreto para reabrir o comércio, quais reações devem ocorrer?

Gustavo Binenbojm Seria uma irresponsabilidade neste momento, em que o país está começando a entender como lidar com um problema tão grave, ter uma ordem de abertura nacional do comércio, quando até a dimensão geográfica do problema ainda está sendo dimensionada. Se ele fizer isso, governadores e Ministério Público irão ao Supremo e irão derrubar o decreto. O decreto federal seria inválido, e os decretos dos governadores e prefeitos prevaleceriam.​

Será mais um desses tiros na água que Bolsonaro dá e depois volta atrás. Como cidadão brasileiros, já estamos nos acostumando a um governo que vai fazendo as coisas, mas depois volta atrás e pede desculpas ou simplesmente finge que não fez nada.

Carlos Ari Sundfeld Se o presidente fizer isso, ele cairia numa hipótese de abuso, e provavelmente o Supremo Tribunal Federal suspenderia esse decreto. ​

Além das instituições jurídicas, o que tem limitado o presidente da República é a falta de apoio de 70% do eleitorado, do Congresso, das Forças Armadas e da grande maioria do empresariado, em relação ao que ele tem feito nessa crise. E também a força da união dos governadores em assuntos de saúde, educação e segurança pública, áreas em que estão 60% da força de trabalho dos governos estaduais. O presidente da República vai minando, desgastando, atrapalhando, mas essas forças têm evitado o caos.

Fonte: Nexo

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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