Há uma comovente invocação do amor ao próximo nas atuais manifestações no
“O amor não é o oposto do ódio, o poder é o oposto do amor” – Carl Jung
As manifestações que tomam conta das ruas de cidades americanas e europeias em decorrência do martírio de George Floyd sob os joelhos de cinco policiais de Minneapolis impressionam por terem tomado feição pacífica após os primeiros confrontos, de grande violência, no Estado de Minnesota. Essa novidade importantíssima da resistência na luta aberta contra o racismo passa despercebido da imprensa e da opinião publica, que se contenta com dados estatísticos e históricos, contabilizando-a entre as maiores nos Estados Unidos, comparáveis às dos anos 1950 e 1960.
Acontece que o presente movimento não é mais do mesmo. Agora existe um grande congraçamento e uma enorme coragem dos milhares de participantes, que, em vez de invocarem o black power, ajoelham-se – numa perna só para mostrar dignidade, e não submissão -, convidando os policiais a fazerem o mesmo.
O mantra é “não consigo respirar”, em lugar de imprecações contra os esbirros do violento racismo. Não se propõem negros e brancos, juntos, a confrontar, mas a demonstrar amor e compaixão em torno do sacrifício de tantas vítimas da persistente discriminação que envergonha secularmente a maior democracia do mundo.
Há uma comovente invocação do amor ao próximo e da misericórdia nesse reencontro dos participantes, ao proclamarem que sem justiça não há paz. Ao invés de confrontarem o poder das ruas e dos votos, milhares se deitam em toda a extensão de uma enorme ponte na posição do martírio de oito minutos de George Floyd.
Esse é o caminho que espontaneamente tomou a parcela antirracista do povo americano na sua reivindicação pelo direito dos negros de não serem perseguidos e massacrados pelo poder público, com o respaldo dos supremacistas.
Nada de confrontos com a polícia ou a temida Força Nacional, armada para reprimir “os terroristas internos”, nas palavras do autocrata Trump. Não se tem mais vergonha de se comportar nas ruas com amor. Essa palavra, banida do uso comum por demonstrar fraqueza e pieguice, volta com força capaz de congregar pretos e brancos na reivindicação de dignidade humana para as vítimas cotidianas da discriminação.
Os manifestantes mostraram profundo respeito por George Floyd e sua filha de 6 anos. A pessoa, a figura do mártir, não foi utilizada para reivindicações cerebrinas e estratégicas de empoderamento dos oprimidos.
Tudo leva a crer que o povo antirracista – pretos, brancos, latinos, amarelos – percebeu que a resistência ao poder iníquo é o melhor caminho, em vez de confrontá-lo diretamente, num ajuste de contas com um Estado altamente aparelhado e truculento. Percebeu-se que o racismo é, sobretudo, uma questão emocional, fruto dos recalques de alma que afetam tanto winners como losers e que apenas uma permanente campanha educacional pode dissipar no decorrer das gerações.
O embate se dá entre os valores culturais e emocionais do racismo, cultivados no meio familiar e social, mostrando a indignidade humana que essa conduta representa.
A propósito, interessante notar que as palavras “amor”, “caráter” e “honra” foram abolidas do vocabulário e das crônicas da vida contemporânea. Mas o amor voltou, não em palavras, mas em atitude dos manifestantes americanos, que, sem muita teorização, perceberam que é inútil confrontar o poder dos brancos no seu racismo institucionalizado com o “poder dos negros”, que, na realidade, pouco pode fazer.
Procura-se agora, com enorme sabedoria, mostrar que o racismo é uma vergonha para uma nação e para todos as pessoas que a integram. Só a afirmação do amor e da súplica pela justiça podem trazer essa consciência aos donos do poder e seus centuriões.
Essa mensagem deve persistir uma vez amainadas as manifestações de rua que ora presenciamos. É necessário que as personalidades envolvidas nessa missão de resgate da dignidade dos negros em todo o mundo tenham a coragem de falar a palavra amor.
Barak Obama, no seu esperado pronunciamento sobre a luta contra o racismo, nenhuma vez invocou o amor que os manifestantes incorporaram ao seu comportamento nas ruas de Washington, Nova York e tantas outras cidades daquele país. Tampouco nos maravilhosos depoimentos das nossas jornalistas negras na GloboNews, em 3 de junho, se ouviu essa invocação do amor. Nem mesmo quando falaram, para nossa profunda comoção, da dúvida existencial das negras sobre a maternidade, pondo filhos neste mundo odioso.
O racismo somente se dissipará quando demonstrarmos às gerações presentes e futuras que ele é uma vergonha e o seu exercício, mais do que um crime, é uma indignidade pessoal para quem o pratica. É fundamental que as grandes fundações privadas e a sociedade civil se empenhem nessa campanha em favor do amor e contra o ódio, pura e simplesmente.
Dedico este artigo a Fernando Gabeira
Fonte: Estado de SP
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.