A perda de hábitos de cooperação, da confiança e da solidez das relações na sociedade contribui para o surgimento de políticos outsiders com promessas vazias.
Hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público são vitais para o vigor das democracias. A solidez e a frequência das interações entre os indivíduos em uma sociedade, e a qualidade das normas de reciprocidade e confiança que regem suas relações determinam o “capital social” de um país ou região. Há meio século esse conceito vem sendo aprimorado, sobretudo a partir do surgimento de pesquisas abrangentes e detalhadas sobre os valores, hábitos e crenças das populações da maior parte dos países.
Vários estudos encontram forte correlação entre a qualidade do capital social e o crescimento econômico, o desenho e desempenho das instituições, a incidência de criminalidade, entre outros fatores. A recente fragilização das democracias ao redor do mundo motivou Paola Giuliano e Romain Wacziarg, ambos economistas, a pesquisar, em trabalho recém publicado, a existência de correlação entre o aumento do populismo e o esgarçamento do capital social no Estados Unidos, medido pelo declínio da participação das pessoas em organizações cívicas e religiosas. Os resultados são robustos e inquietantes.
Os autores analisam a eleição de Donald Trump em 2016 com base nos números das primárias do Partido Republicano e da eleição geral, a partir tanto de dados relativos a cada distrito eleitoral como de pesquisas feitas com indivíduos. Constroem, por exemplo, um indicador de capital social por distrito eleitoral entre 2009 e 2014 baseado em quatro variáveis: 1) densidade das organizações cívicas, religiosas, profissionais, políticas e esportivas; 2) comparecimento às urnas; 3) taxa de resposta ao Censo; e 4) número de organizações sem fins lucrativos, incluindo as de origem internacional. Outro indicador de capital social veio de uma medida objetiva de confiança obtida do General Social Survey. Também foram consideradas nas regressões outras variáveis correlacionadas com as preferências eleitorais, como educação, densidade populacional, desemprego, porcentagem de emprego industrial, renda e composição racial. Já os dados individuais vieram de duas bases de dados (CCES e Gallup), sobre atitudes políticas e questões demográficas antes e depois da eleição de 2016, e sobre a preferência por Trump como presidente.
A eleição de Jair Bolsonaro indica que também no Brasil os laços sociais e a confiança entre as pessoas vêm sofrendo forte desgaste.
Os resultados encontrados em todos os casos analisados são muito robustos e indicam que as preferências por Trump são inversamente correlacionadas com o capital social, ou seja, com a densidade de associações cívicas, religiosas e esportivas, bem como com medidas de confiança generalizada, indicando que movimentos populistas parecem prosperar em locais onde houve desintegração de laços sociais em décadas recentes.
É provável que indivíduos com fortes vínculos e conexões sociais tendam a encontrar mais facilidade e ajuda para enfrentar mudanças econômicas resultantes da globalização, do progresso tecnológico e da imigração. As conexões sociais podem ajudar também na requalificação profissional de quem perde emprego, por exemplo. Já uma pessoa desempregada com fracos laços sociais tende a ser mais suscetível aos apelos dos populistas de plantão, que culpam os imigrantes, a globalização, a tecnologia, ou ainda as elites pelos seus sofrimentos, abrindo as portas para outsiders que se vendam como os verdadeiros representantes “do povo”. Um importante alerta vem da observação de que a eleição de uma figura como Trump não foi um mero acidente, é fruto de um processo que vem sendo gestado há tempos na sociedade norte-americana.
A eleição de Jair Bolsonaro indica que também no Brasil os laços sociais e a confiança entre as pessoas vêm sofrendo forte desgaste em décadas recentes. A hiperinflação, por exemplo, não teria sido debelada não fosse a conjugação de um plano econômico competente com uma coordenação de expectativas que contou com cooperação e confiança de toda a sociedade. Além das alterações adequadas nas políticas monetária, fiscal e cambial, era necessário promover uma espécie de “acordo” para que todos remarcassem seus preços à mesma taxa, ou seja, para que uma pessoa ou empresa não obtivesse vantagem sobre a outra durante a transição para a nova moeda. Para tanto, foi criada uma Unidade de Referência de Valor, a URV, que refletia a variação média diária de três índices de preços. Todos os preços dos bens e serviços eram cotados em URVs e pagos em cruzeiros reais convertidos pela cotação diária da URV. Um mecanismo muito complexo, mas que ainda assim contou com o apoio e a cooperação da população, sem o qual não teria funcionado. A inflação caiu e deixou de ser um problema. Ganhamos todos, e ganharam sobretudo os mais pobres, que mais sofriam com a inflação elevada.
Visto de hoje esse episódio parece ter acontecido em outro planeta, ou talvez na Dinamarca, mas nunca no Brasil atual. Imagino como reagiriam a uma URV os negacionistas, terraplanistas e outros seres das trevas… Impensável. Ou seja, esse é apenas um exemplo a evidenciar a forte deterioração do capital social ocorrida no país em décadas recentes. Os laços sociais se esgarçaram depois de anos de “nós contra eles” e de “e daí?”; da desvalorização do voto pelos seguidos estelionatos eleitorais; de disseminação da grande corrupção; de recessão e de desemprego.
Esses laços precisam ser reparados se quisermos construir um futuro melhor. A sociedade civil, que tem na imprensa sua grande aliada, tem dado mostras de vigor cívico e de apreço aos valores democráticos, pressionando por integridade, justiça e responsabilidade no uso do dinheiro público.
Já o nosso sistema político carece de uma reforma profunda, distante que está de bem representar os interesses de seus eleitores, situação que vem se deteriorando continuamente. Segundo o World Values Survey, por exemplo, a proporção de pessoas que diz confiar nos partidos passou de 33%, na pesquisa de 1994-98, para 13%, na mais recente (2017-20), refletindo um nível alarmante de erosão da credibilidade. É importante notar que a maior queda ocorreu entre 1994-98 e 2010-14, o que destrói a versão de que a Lava Jato seria responsável pela desmoralização dos políticos. Não é o caso. Eles se desmoralizaram per se, ao fazer de partidos meros amontoados de interesses pessoais, ressalvadas as raras e honrosas exceções. Enquanto o interesse público não comandar as escolhas do Parlamento estaremos à mercê de aventuras populistas, que se alimentam da falta de esperança da população.
Fonte: Nexo Jornal
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