Para Daniel Goldberg, sócio da Farallon Capital e um dos mais respeitados atores do mercado financeiro no Brasil, o debate sobre a crise econômica está carregado de falsas impressões. A começar pela crença de juros muito baixos a longo prazo – “bolo de chocolate sem as calorias”, diz. Em entrevista a PODER, o ex-secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça indica rotas navegáveis, mas alerta para a ressaca brava num mercado que não está para peixe.
POR ARMANDO OURIQUE FOTOS ROBERTO SETTON
O mercado não está para peixe.” Esta é a avaliação de Daniel Goldberg, um dos mais respeitados atores do mercado de capitais no Brasil, ao alertar sobre o nebuloso horizonte econômico que se aproxima. Em entrevista a PODER, o sócio responsável pela Farallon Capital na América Latina examina com bom humor e clareza a enorme complexidade do período de incertezas e aponta soluções para a crise. Porém, o país precisará vencer três desafios: manter os juros básicos a taxas próximas dos níveis atuais no longo prazo, crescer 3% em 2021 e de 1,5% a 2% pelo resto da década e segurar o teto dos gastos públicos. Incomum entre seus pares, Goldberg estudou Direito e obteve o título de Master of Laws da Harvard Law School – na instituição cursou também disciplinas de economia na Escola de Governo. No Brasil, sem qualquer identificação histórica com o PT, aos 26 anos foi nomeado pelo ex-presidente Lula secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça e tomou posse em 2003 ao lado do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos. A experiência, segundo ele, foi a mais gratificante da carreira. Participou do desenho das reformas microeconômicas junto com outros integrantes do Ministério da Fazenda como Joaquim Levy, Marcos Lisboa e Bernard Appy. A porta de entrada no mercado financeiro foi no Morgan Stanley, onde, durante cinco anos, Goldberg ascendeu de chefe do grupo de fusões e aquisições a presidente da companhia no Brasil. Desde então, é um dos mais eloquentes tradutores do sobe e desce do capital.
PODER: COMO FOI SUA EXPERIÊNCIA NO PODER PÚBLICO COMO SECRETÁRIO DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA?
DANIEL GOLDBERG: Conhecia o Márcio Thomaz Bastos antes de ir para a Harvard Law School. Ele me ligou em novembro de 2002 quando foi convidado para o ministério. Conversamos três vezes. Tinha 26 anos e indiquei nomes de advogados mais experientes. Mas no dia 2 de janeiro saiu na imprensa que o presidente Lula ia me nomear, apesar de, até então, eu nunca o ter visto. Descobri pelo jornal. Adorei a experiência. Do ponto de vista profissional, emocional e intelectual foi a mais satisfatória que tive na vida. Tive sorte de ser parte de um time que fez muita coisa interessante, com uma agenda de reformas institucionais que deixou um legado importante para o país.
PODER: POR SER ADVOGADO, VOCÊ TEVE UM INÍCIO, DIGAMOS, POUCO USUAL NO MERCADO FINANCEIRO.
DG: O José Olympio Pereira, hoje CEO do Credit Suisse Brasil, me chamou para conversar: “Você é um regulador, um advogado, sabe economia e a gente consegue te transformar em um banqueiro de investimento”. Eu nem sabia o que era ser um banqueiro de investimento. Fui comprar um livro: Investment Banking. Fiz carreira no Morgan Stanley, chegando a ser presidente, até meados de 2011. Saí para montar uma gestora de fundo de investimento. Quis ser alguém que fosse um resolvedor de problemas com capital. Associei-me ao Farallon. No começo eles eram meus sócios minoritários. Em 2014, vendi minha participação na gestora brasileira e fiquei apenas como sócio deles nos EUA. E atualmente toco a Farallon na América Latina.
PODER: A SUA ATIVIDADE PRINCIPAL É REALIZAR OPERAÇÕES ESTRUTURADAS PARA A CAPITALIZAÇÃO DE EMPRESAS, CORRETO?
DG: Exato. Muitas vezes os investimentos que fazemos têm a ver com empresas que estão em dificuldades e precisam de um bote salva-vidas para que possam atravessar esse período de dificuldades. Investimos também na situação oposta: empresas que estão indo bem e querem crescer mais, mas o sistema bancário tradicional não dá a elas acesso a crédito porque já estão alavancadas com dívidas. Entramos também em situações onde o nível de complexidade regulatória é tal que os fundos tradicionais não têm mandato para digerir aquele negócio.
PODER: O QUE ACHA DAS POLÍTICAS ANTICÍCLICAS QUE ESTÃO SENDO ADOTADAS?
DG: Nesse momento, fazer esforço fiscal é algo bem-vindo e necessário. O segredo está menos na discussão de quanto a gente deve gastar agora e mais em como a gente faz para reverter essas políticas e pagar a conta. Eu pessoalmente sou favorável a gastar muito e rápido. Do ponto de vista dos mercados, acho que por ora ninguém está ligando para se o país vai sair devendo 95%, 100% ou 105% do PIB. A discussão é o que acontece na ressaca, no pós-pandemia. As pessoas querem acreditar que o mundo de juros baixos veio para ficar, no próximo quinquênio, pelo menos. E que, portanto, o Brasil vai sair dessa devendo mais, porém tendo um serviço da dívida menor. Querem acreditar que o ônus fiscal de servir a dívida vai ser menor no pós-crise do que no pré-crise, por conta da queda da taxa básica de juros. Um bolo de chocolate sem as calorias.
PODER: ISSO É ILUSÓRIO?
DG: Não sei. Quando você está no mercado financeiro aprende a dar menos valor a cravar previsão. O importante não é o que vai acontecer, mas é a distribuição do que pode acontecer, a probabilidade de cada cenário e quão dramáticas serão as consequências para cada um deles. Para mim, é mais útil dizer que a trajetória da dívida brasileira vai sair de controle se as seguintes coisas não se acumularem: nós precisamos acreditar que vamos 1) conseguir rolar a dívida do país a uma taxa de juros real de 2% ou menos, 2) que o Brasil vai crescer pelo menos 3% no ano que vem e depois entre 1,5% e 2% real durante toda a década, coisa que temos tido dificuldade de fazer e 3) que o teto de gastos fica. Se essas três coisas acontecerem, deveremos 100% ou 105% do PIB após a Covid-19 e mesmo assim a dívida vai continuar estável. Não vamos entrar em uma trajetória exponencial de ressaca. Caso contrário, corremos o risco da dramática deterioração fiscal, que aconteceu nos anos da ex-presidente Dilma, em que a dívida começou a exponenciar.
PODER: QUAIS SERÃO AS CONSEQUÊNCIAS SE A DÍVIDA FUGIR AO CONTROLE?
DG: Na hora em que a dívida começa a exponenciar, cobra-se maior prêmio de risco. Aí a dívida vai encurtando de prazo. O capital escasseia, as empresas não conseguem se financiar, fazem menos investimentos e o PIB futuro sofre. Isso cria um ciclo vicioso, que foi o que aconteceu na contração de 2015 e 2016. As pessoas esquecem, mas, a contração de 9% do PIB per capita é uma contração de recessão econômica pesada. Passamos por isso e não faz muito tempo.
PODER: COM RELAÇÃO A CRÉDITO, SERÁ AINDA MAIS DIFÍCIL NEGOCIAR COM OS BANCOS A MÉDIO PRAZO? DEVEMOS TER UM NÚMERO MAIOR DE FALÊNCIAS NO ANO QUE VEM?
DG: As situações de iliquidez são endereçáveis de várias maneiras. Outra situação é a de insolvência, em que a dívida vale mais do que o ativo. Nesse caso, temos um problema. O único jeito de resolvê-lo é fazer o passivo ficar do tamanho do ativo. No Brasil, há uma série de ineficiências de natureza institucional, relacionadas à lei de falências, à realização de garantias, que tornam muito mais difícil lidar com essa conjuntura de forma eficiente e rápida. Quando o cobertor está curto, o credor morre de medo de entrar debaixo dele porque teme levar passivo trabalhista ou ambiental para casa. E o devedor, sabendo disso, acaba impondo uma perda ainda maior ao credor. O governo está agora sofrendo com a dificuldade de fazer o dinheiro novo chegar na ponta, principalmente das pequenas empresas. Por mais que o Banco Central esteja fornecendo liquidez na ponta do funding dos bancos, essa liquidez e esse capital não viram empréstimo por conta de risco de crédito.
PODER: QUANDO VAMOS ATINGIR O FUNDO DO POÇO DA CRISE ECONÔMICA?
DG: Não tenho bola de cristal, mas do ponto de vista das nossas condições de saída da crise, existe uma chance razoável da ressaca infelizmente ser brava. Como investidor, me especializei em situações de estresse financeiro. A minha experiência em crises anteriores é que o coice vem sempre uns seis meses depois do evento. Eu me preocupo muito com o segundo semestre para as empresas, acho que é esse que vai doer mais: na hora em que os incentivos e as injeções fiscais vão perdendo o efeito, em que as empresas forem se ajustando para o novo mundo e as demissões começarem a fazer efeito no mercado. Tipicamente são esses seis meses que são cruciais. Os seis meses subsequentes ao impacto.
PODER: COMO VOCÊ EXPLICA A DIFERENÇA ENTRE OS PREÇOS DAS AÇÕES NA BOLSA E O QUE ESTÁ ACONTECENDO DENTRO DAS EMPRESAS?
DG: Historicamente o mercado acionário é um bom termômetro do sentimento das pessoas em relação ao que vai acontecer com a economia. É um bom indicador antecedente. Mas a economia não é um bom indicador antecedente do que acontecerá com o mercado acionário. Nos últimos 40 anos a correlação entre a performance do PIB e o retorno do mercado acionário é uma correlação muito baixa no curto prazo. O mercado indo bem auxilia a economia a se recuperar, mas o inverso não é necessariamente verdadeiro. Dito isso, de fato alguns indicativos são impressionantes, no sentido da magnitude dessa desconexão. Nós nunca vimos uma disparidade tão grande entre um e o outro.
PODER: A QUEDA DOS JUROS BÁSICOS NÃO EXPLICARIA A MAGNITUDE DESSA DESCONEXÃO?
DG: Como o valor de qualquer empresa é o fluxo de caixa que ela vai gerar no futuro e as pessoas genuinamente esperam que os juros permaneçam baixos por muito tempo, o desconto desse dinheiro trazido ao valor presente ficou pequeno. Portanto, o valor presente das empresas aumentou muito. Outra forma de entender essa desconexão: se você acreditar que a Covid-19 é apenas uma crise transitória e que tudo vai voltar como antes depois de 12 ou 24 meses, você pode simplesmente subtrair dois anos de geração de caixa e ver qual efeito que isso gera sobre o valor. O efeito afeta o valor presente em 5% ou 10% no máximo. Não é maluco se você acredita que esta crise é transitória, mas é se acredita que os juros muito baixos vieram para ficar muito tempo.
PODER: NÃO HÁ ENTÃO A POSSIBILIDADE DE OS JUROS BAIXOS PERMANECEREM?
DG: O mercado está esticado em diversos pontos. Alguns indicadores mostram que está quente demais e superespeculativo. Você vê companhias que em 3, 4, 5 dias negociam em bolsa o valor inteiro de mercado delas. Isso costuma ser uma indicação de que a quantidade de pessoas jogando videogame com o mercado de ações aumentou. Outro indicativo é olhar a volatilidade implícita das ações quando elas sobem. Quando o mercado está muito quente, especulativo, a ação sobe, digamos, 10% em um dia e o mercado precifica a chance de ela subir mais ainda no dia seguinte. Isso está acontecendo com algumas ações tipo Tesla, que a turma adora. Um terceiro indicativo de que talvez o mercado está dando um salto um pouco além das pernas é o mercado de dívida high yield (de alto rendimento). Esse sim acho que está completamente maluco. Quando você compra dívida corporativa, você compra apenas claim (crédito), um direito contra a empresa. O melhor que pode acontecer é receber o principal mais juros. Com os títulos de dívida você consegue checar se o mercado está excessivamente otimista ou não, dependendo de pouquíssimas premissas. E, quando olha os preços que estão implícitos nas dívidas de risco, vê que os mercados estão extremamente otimistas sobre a quantidade de empresas que devem quebrar. Então, para encerrar, a resposta à sua pergunta é que a desconexão existe sim e talvez seja historicamente a maior que a gente já tenha visto. Olhando esses indicadores diria que o mercado não está para peixe.
Fonte: Glamurama
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