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Novo programa social exige racionalizar políticas existentes

Especialistas dizem que desafio envolve escolhas difíceis, mas são parte do processo natural de revisão

Ricardo Paes de Barros: se gastar tudo com transferência de renda, não sobram recursos para inclusão produtiva — Foto: Silvia Zamboni/Valor

Ricardo Paes de Barros: se gastar tudo com transferência de renda, não sobram recursos para inclusão produtiva — Foto: Silvia Zamboni/Valor

Reformular benefícios sociais existentes para criar um programa de transferência de renda mais robusto e eficaz é um desafio, seja para políticos, seja aos olhos da população, mas esse é também um processo natural de revisão das políticas públicas, com escolhas que precisam ser compreendidas e enfrentadas pelo governo, o Parlamento e a sociedade, dizem especialistas. Parte deles também acha, porém, que o debate precisa avançar, para buscar financiamento entre as camadas que podem contribuir mais, para não se limitar a análises de curto prazo ou para viabilizar uma “inclusão produtiva” de fato dos mais pobres.

Com a fusão do Bolsa Família ao abono salarial, o salário-família e o seguro-defeso, seria possível criar um benefício de renda mínima (BRM) para 13,2 milhões de famílias, com valor médio mensal de R$ 230, estimam pesquisadores no Programa de Responsabilidade Social, elaborado a convite do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP).

A ideia é “atribuir” às famílias um valor de R$ 125 por pessoa, do qual seriam deduzidos 80% da renda per capita com trabalho e todo o valor não originário de trabalho (benefícios, aposentadorias, aluguel etc). Se, após os descontos, o resultado for positivo, a família está elegível, e o valor do BRM será esse montante restante, por pessoa.

Além disso, para minimizar a volatilidade de renda, escancarada na pandemia, famílias com ganho per capita de até R$ 780 – o que engloba quase toda a metade mais pobre do país -, receberiam depósito mensal equivalente a um percentual do rendimento do trabalho, formal ou informal, até um teto. Para famílias no BRM, essa porcentagem seria de 15%. A poupança poderia ser sacada em situações específicas, como a morte de provedores, desastres naturais e período de defeso na pesca, ou quando houvesse queda drástica no rendimento declarado – neste caso, limitado a dois saques por ano.

“Quando a família é muito pobre, ela recebe a renda mínima. Se a renda vai subindo, o benefício vai caindo, mas ela também vai tendo direito a um depósito maior do seguro-família”, diz Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e um dos autores do projeto, ao explicar a concepção de “porta giratória” de programas sociais.

Diferentemente de outros programas em discussão ou do que se fala a respeito do Renda Brasil do governo, a proposta do grupo não coloca na Constituição o benefício, o que poderia criar a noção de direito adquirido e tirar flexibilidade e capacidade de focalização, nem parte do diagnóstico de que políticas de formalização do trabalhador têm sido bem-sucedidas, explica Mendes.

Outro pilar do programa é a neutralidade fiscal. O BRM teria custo anual de R$ 57,1 bilhões (R$ 6 bilhões para a transição). Nada impede que parlamentares destinem mais recursos, mas essa é uma questão de prioridades, dizem os autores. “Estão sendo tomadas várias decisões que aumentaram a despesa pública e que poderiam não ter sido feitas se a escolha fosse ter disponibilidade para um programa de renda mínima mais abrangente”, afirma Mendes, citando maior volume de emendas parlamentares obrigatórias e de orçamento às Forças Armadas.

A fusão dos benefícios seria desenhada independentemente da questão fiscal, pondera Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) e outro autor da proposta. “Esses programas estão realmente perdendo efetividade. Isso é natural, os benefícios evoluem, não podemos perder de vista que as políticas públicas têm de ser avaliadas.”. Segundo Vinícius Botelho, também do Ibre e autor do projeto, o que se propõe é uma atualização de benefícios de natureza trabalhista. “O Brasil tem hoje uma das melhores redes de proteção social do mundo em termos de capacidade de chegar à população mais pobre. Se a gente fosse desenhar hoje uma política de proteção aos trabalhadores de baixa renda, não íamos criar o abono.”

O presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado muito resistente a mexer nos benefícios atuais, afirmando que não vai “tirar de pobres para dar a paupérrimos”. “O presidente tem um ponto legítimo. Poderíamos buscar outras fontes, mas é uma questão de priorização”, diz Pedro Fernando Nery, consultor econômico do Congresso. Ele defende, a partir de elaboração do Ipea, a unificação de programas para criar um benefício infantil universal. “Sabendo que ele vai chegar a crianças pobres e que o tempo perdido nessa fase não volta, podemos pensar: ‘Não é o ideal, mas vou direcionar os recursos para quem precisa mais’.”

Diversos pesquisadores lembram ainda que o próprio Bolsa Família foi criado a partir da junção de outros programas e dizem que foi exatamente a substituição de projetos descoordenados por um focalizado que conferiu seu reconhecido sucesso.

Idealizador do Bolsa Família, Ricardo Paes de Barros, do Insper, é ainda mais enfático na necessidade de uma profunda redistribuição de recursos. “Qualquer rearranjo da política social brasileira significa maior focalização, significa tirar da classe média, e às vezes da classe média baixa, para dar para quem realmente precisa. Hoje, com o Bolsa Família, transferimos pouco para muitos, precisamos transferir mais para poucos.”

Paes de Barros defende a unificação de uma série de programas, como Bolsa Família, abono salarial, salário-família e até o seguro-desemprego, que, juntos, somam R$ 100 bilhões em transferências aos trabalhadores, segundo ele. “É uma quantidade de dinheiro considerável”, diz. “Qualquer política pública que não é permanentemente aprimorada fica ruim.

Concentrar toda a atenção na transferência de renda, porém, “é um erro estratégico”, afirma o professor. Para ele, isso é “apenas um primeiro passo”. “A gente tem um risco grave de focar a atenção demais na garantia de renda sem oferecer para as pessoas oportunidades de efetivamente aumentarem sua produtividade”, diz ele, citando a importância de programa de intermediação de mão de obra e crédito produtivo orientado. “Se gastar demais com a transferência, não vamos ter recursos para a inclusão produtiva, o passo seguinte.”

Para Naercio Menezes Filho, também do Insper, o debate “tem ficado muito só onde cortar”, sem olhar para quem poderia contribuir mais. Na sua proposta – um benefício adicional ao Bolsa Família por criança de zero a 12 anos -, parte dos recursos viria do fim de descontos no Imposto de Renda, de nova alíquota de 35% aos mais ricos e da tributação de  todas as rendas, incluindo lucros e dividendos, pelas respectivas faixas.

Além disso, Naercio diz que o país precisa começar a calcular o “valor marginal” dos recursos públicos “Alguns programas têm retornos a longo prazo e se pagam. Temos um problema fiscal que não pode ser ignorado, mas, às vezes, a gente não pensa no longo prazo, fica só vendo quanto tem de dinheiro agora. Acho equivocado.”

Fonte: Valor Econômico

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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