‘Estadão’ ouviu especialistas em transferência de renda para apresentar sugestões de como o governo pode aumentar os recursos para bancar o novo programa social
BRASÍLIA – Incomodado com a reação negativa do mercado financeiro às propostas de financiamento do Renda Cidadã, o presidente Jair Bolsonaro desafiou os críticos a apresentarem propostas para aumentar recursos com o objetivo de bancar o novo programa social do governo em 2021.
“O Brasil é um só. Se começar a dar problema, todos sofrem. Pessoal do mercado não vai ter também renda, vocês vivem disso, de aplicação. Queremos, obviamente, estar de bem com todo mundo, mas eu peço, por favor, ajudem com sugestões. Não com críticas”, afirmou o presidente.
Na segunda-feira, o anúncio de que o programa que o governo quer criar para substituir o Bolsa Família, a partir de janeiro do ano que vem, seria financiado com o adiamento do pagamento de parte dos precatórios recursos do novo Fundeb (fundo para a educação básica) acabou causando tensão no mercado com o temor de o impasse em torno do Renda Cidadã ampliar os riscos para as contas públicas.
Representantes da área social e da educação também se manifestaram contra as medidas, que classificam de “pedalada fiscal”. Ajustes nas propostas estão sendo feitos, mas técnicos da área econômica ainda esperam que possa ser retornado o debate de mudanças antes rejeitadas pelo presidente, como o abono salarial e outros programas sociais considerados ineficientes.
“Minha crescente popularidade importuna adversários e grande parte da imprensa, que rotulam qualquer ação minha como eleitoreira. Se nada faço, sou omisso. Se faço, estou pensando em 2022”, disse Bolsonaro.
O Estadão aceitou o desafio do presidente e ouviu economistas em contas públicas e especialistas no tema de transferência de renda sobre propostas para viabilizar o reforço de ampliar a rede de proteção no pós-pandemia.
Em comum, sugestões para reformulação dos atuais programas sociais e revisão dos gastos com medidas duras, que foram rejeitadas pelo presidente e o seu grupo político, como corte de renúncias e subsídios. Entre as medidas, a revisão do abono salarial (benefício de até um salário mínimo pago a quem ganha até dois pisos) que o presidente condenou com o discurso de tirar dos “pobres para os paupérrimos” até a revisão das regras fiscais para acomodar mais recursos para os mais vulneráveis depois do auxílio emergencial.
Uma das propostas é a formulação de um modelo de proteção que abarque a pobreza transitória e o alerta também da impossibilidade prática de unificar programas sociais em poucos meses.
Há também um plano bienal de enfrentamento da calamidade pública para o custeio da renda básica emergencial em 2021, sem colocar em risco outras políticas públicas igualmente relevantes.
O Estadão já tinha publicado proposta feita a pedido do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) para reformulação ampla dos programas sociais do governo feitos pelos economistas Vinicius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes. O CDPP tem à frente os economistas Ilan Goldfajn e Affonso Celso Pastore.
A ideia é criar um programa de renda básica que inclua uma “poupança” para lidar com a volatilidade de renda dos informais. Para criar o novo benefício, os autores sugerem a fusão do Bolsa Família com programas considerados “antiquados” e com baixa capacidade de redução de pobreza, citando o salário-família, o abono salarial e o seguro-defeso.
Os cálculos apontam que a criação deste seguro beneficiaria os 46% mais pobres da população brasileira.
Veja abaixo o que disse cada um dos especialistas consultados pelo Estadão:
‘Certo é juntar programas sociais existentes’ – Samuel Pessôa, pesquisador sênior do Ibre/FGV
“O uso do Fundeb não é um problema grave, em si, por se tratar de um gasto que já seria feito. A questão é como redirecionar recursos de uma função fora do teto de gastos para uma que teria de ser dentro dele. Mas a ideia de usar precatórios é horrível, seria financiar o programa com mais endividamento. A solução mais acertada, na minha opinião, é a que junta programas sociais existentes (Bolsa Família, seguro-defeso, abono salarial, entre outros), defendida por entidades, como o Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP). Outras sugestões que já foram discutidas – como congelar os benefícios da Previdência por dois anos ou rever os aumentos para servidores – parecem acertadas também, embora politicamente inviáveis. O problema é que existe hoje uma demanda para aumentar o gasto e é possível que a única solução aceitável acabe sendo um aumento de impostos, para sobrar o dinheiro que vai financiar o programa.”
‘Expandir a reforma administrativa’ – Zeina Latif, consultora e doutora em Economia pela USP
“O que foi proposto pelo governo na última segunda-feira é um desastre. Usar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) é um oportunismo para furar o teto de gastos. No caso dos precatórios, adiar o pagamento de dívidas é uma sinalização ruim e essa não é uma fonte segura para um programa de natureza permanente, como o de renda mínima. Eles estariam apenas postergando pagamentos. O que deve ser feito é remanejar recursos de outros programas sociais, expandir a reforma administrativa para, em alguma medida, atingir os atuais servidores e todas as categorias, além de congelar o valor de benefícios previdenciários para rendas mais elevadas. É preciso ter muito cuidado no desenho do programa, não se pode repetir os mesmos erros do auxílio emergencial, que foi mal focalizado. E é preciso pensar em um programa que tenha algum tipo de inserção produtiva.”
‘É possível cancelar despesas’ – Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado
“O financiamento de políticas públicas deve ser transparente e pautado em regras claras, princípios que possam nortear a administração pública, de um lado, e sinalizar à sociedade e ao mercado a capacidade de garantir as condições de solvência do Estado. No caso do Renda Cidadã, a depender de sua dimensão, é possível cancelar despesas para comportá-lo de maneira fiscalmente responsável no Orçamento. Como se sabe, o teto de gastos corre risco de ser rompido em 2021. Isso não é o mesmo, porém, que abandonar a regra. Se os gatilhos forem acionados, será possível ganhar tempo para aprimorar o teto sem malabarismo e contabilidade criativa. O corte de subsídios creditícios, a possibilidade de se adotar medidas no gasto com pessoal, a exemplo da redução de jornada, e a não postergação da desoneração da folha são três medidas que poderiam ajudar a abrir espaço orçamentário para um programa focalizado ou mesmo uma complementação ao Bolsa Família.”
‘É preciso cautela típica do pós-guerra’ – Élida Graziene, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo
“A necessidade de revisão do teto dado pela Emenda 95/2016 se tornou o centro do debate no projeto de Orçamento para 2021. Se, em 2020, vivemos sob o orçamento de guerra, em 2021, precisaremos pautar políticas públicas seguindo a cautela típica do pós-guerra. Não é possível voltar ao horizonte fiscal de 2019, até porque a insegurança sanitária, social e econômica trazida pela covid-19 não será eliminada com os fogos de artifício do réveillon. Um plano bienal de enfrentamento da calamidade pública traria fôlego e racionalidade fiscal para debatermos a necessidade de equalizar a continuidade do custeio da renda básica emergencial sem colocar em risco outras políticas públicas relevantes. Planejar a transição, sobretudo diante da frágil capacidade de arrecadação de todos os entes da Federação, é esforço de justiça fiscal que pode ser feito de forma transparente e equilibrada até para que seja resguardado o custeio dos serviços públicos essenciais.”
‘Otimizar programas sociais’ – Manoel Pires, coordenador do Observatório Fiscal do Ibre
“O programa Renda Cidadã encontra muitas dificuldades para obter financiamento adequado e o presidente pediu uma contribuição para viabilizá-lo. Pelo lado das despesas, é possível otimizar a cobertura de programas sociais. O abono salarial pode ser destinado para as pessoas com mais tempo no mercado de trabalho. Atualmente, basta trabalhar 30 dias para ter acesso ao benefício. O salário-família e o seguro-defeso deveriam ser revistos. O governo destina muitos recursos para as estatais que podem ser mais eficientes, algumas devem ser fechadas e outras privatizadas. Na reforma administrativa, é necessário regulamentar o teto do funcionalismo. Pelas receitas, existem renúncias no imposto de renda que geram benefícios para camadas mais protegidas. Na estratégia de reforma tributária, o governo anunciou a tributação sobre dividendos, mas não implementou. A tributação sobre direitos de imagem e rendimentos com tributação exclusiva podem ser revistos.”
‘Base deve vir do cadastro único’ – Letícia Bartholo, gestora governamental e ex-secretária adjunta de Renda de Cidadania
“Nos últimos meses, o debate em torno da transferência de renda assistencial ganhou força com o fim próximo do auxílio emergencial e pululam propostas de novos programas sociais. Fosse a discussão menos ensimesmada e sentassem à mesma mesa os diferentes perfis, a conversa levaria à definição de aspectos consensuais que me permito indicar: 1) o aparato institucional para ampliação das transferências deve ter como base o Cadastro Único e o Sistema Único de Assistência Social; 2) a articulação entre políticas sociais feita pelo Bolsa Família é exitosa e deve ser respeitada; 3) a intensa volatilidade de renda entre os mais vulneráveis exige um modelo de proteção que abarque a pobreza transitória; e 4) a regra fiscal em vigor requer revisão para que o desafio seja cumprido minimamente. Entre achar que nada pode ser feito e que tudo pode ser feito, está o mundo real. E, se ele não é binário, também o debate não pode ser.”/ COLABORARAM EMILLY BEHNKE E DOUGLAS GAVRAS
Fonte: Estado de SP, por Adriana Fernandes
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.