O mais provável é que se acabe encontrando uma solução em que o teto não seja furado de direito, mas o seja de fato
Por Márcio Garcia
O cenário macroeconômico depende basicamente da resolução que se dará à atual disjuntiva fiscal: será ou não mantido o teto de gastos para 2021.
O teto foi instituído, em 2016, para impedir que a despesa pública continuasse a se expandir a taxas superiores à do crescimento do PIB, como vem ocorrendo há décadas. Se essa expansão permanecesse no mesmo ritmo, a dívida pública, medida em proporção do PIB, permaneceria em crescimento explosivo. O que, mais cedo ou mais tarde, poderia levar a um calote da dívida pública com graves consequências para a economia do país.
Como nossa dívida pública é majoritariamente denominada em moeda nacional, é bem provável que o calote se desse de forma implícita, com a volta da inflação alta. Ou seja, o teto é hoje instrumento fundamental para preservar a estabilidade macroeconômica duramente conquistada com o Plano Real, em 1994, após inúmeras tentativas fracassadas desde o Plano Cruzado, em 1986.
Sem dúvida alguma, o teto de gastos tem defeitos. Mas há também muitas fake news sobre ele. Por exemplo, não é verdade que o teto limite gastos para educação, saúde, assistência social ou qualquer outra área meritória. Limita tão somente a expansão do gasto agregado, que é exatamente o que qualquer outra regra fiscal teria que fazer para evitar a explosão da dívida pública. Ou seja, o teto requer que o Congresso Nacional, ao fazer o orçamento, aloque mais ou menos fundos de acordo com suas prioridades. Dado o absurdo engessamento das despesas públicas, com mais de 90% do orçamento sendo alocado de forma automática, a Emenda Constitucional cria formas de abrir espaço para atender as prioridades, evitando a explosão da dívida.
Portanto, o teto, para cumprir seu papel, tem que criar tensões entre as diversas prioridades, muitas delas, mas não todas, muito louváveis. O que vivemos neste momento é exatamente a exacerbação dessas tensões.
O Executivo vê como essencial a criação de um programa de transferência de renda que suceda o auxílio emergencial. Ainda que motivações eleitoreiras possam estar por trás de tal movimento, há concordância entre os especialistas de que um programa mais amplo e mais generoso do que o Bolsa Família se faz necessário. Em especial, é preciso que tal programa ganhe a dimensão de um seguro de renda para aqueles pobres que normalmente conseguem se virar sem a ajuda do governo, mas que podem se ver sem sustento em situações especiais, como ocorreu na pandemia.
O Programa de Responsabilidade Social, proposto por pesquisadores associados ao CDPP é uma excelente contribuição para melhorar nossos programas sociais sem estourar o teto de gastos (cdpp.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Artigo-Ilustr%C3%ADssima-Programa-de-Responsabilidade-Social.pdf).
Outra inverdade é que o teto impediria o combate à pandemia. Como se viu, há previsões legais para momentos excepcionais, como o atual. O Brasil é, dentre os mercados emergentes, dos países que mais gastaram, em termos relativos, no combate à pandemia. O que não pode, como lembrou recentemente o ministro da Economia, é continuar gastando “para ganhar eleição”. Esta é a principal função do teto de gastos.
O prognóstico fiscal da economia brasileira não é alvissareiro. Bolsonaro parece absolutamente determinado a ter um programa de redistribuição de renda, a partir de 2021, ao mesmo tempo que bloqueia as iniciativas para cortes de outros gastos no orçamento que poderiam viabilizar o novo programa sem romper o teto de gastos. A menos que se construa um consenso rapidamente, o mais provável é que se acabe encontrando uma solução em que o teto não seja furado de direito, mas o seja de fato. A ideia de usar recursos do Fundeb e dos precatórios – que causou queda da bolsa, alta do dólar e aumento dos juros longos – mostra que alguma solução “criativa” poderá acabar sendo adotada.
A reação do mercado ajudou a conter a solução criativa da semana passada. Mas será suficiente para conter a(s) próxima(s)? Infelizmente, é alta a probabilidade que não seja. Afinal, as condições de liquidez internacionais continuam cada vez mais frouxas. Há juros extremamente baixos ou mesmo negativos nos países avançados, de onde provém o capital. O Fed, por exemplo, com sua nova sistemática de política monetária (Fait, Flexible Average Inflation Targeting), promete manter juros muito baixos por longo período, mesmo que a inflação por lá volte a ficar acima de 2%. Juros baixos empurram com força capitais para ativos que paguem taxas mais altas. É bem provável que se acabe achando uma solução “criativa”, que preserve a aparência de controle fiscal, mas que mantenha a dívida em trajetória explosiva. Poderia funcionar por algum tempo (até outubro de 2022?), às custas de dano inevitável para os investimentos produtivos, para a geração de empregos e para o crescimento da economia brasileira.
Ou seja, tenta-se descobrir um “sótão de gastos” para permitir acomodar novos gastos, sem furar ostensivamente o teto. Em livros e filmes de terror, sótãos são, em geral, lugares lúgubres onde se descobrem surpresas terríveis ou são cometidos atos tenebrosos. Tomara que não estejamos prestes a rever esse tipo de filme na economia brasileira.
Fonte: Valor Econômico
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.