Para Solange Srour, do Credit Suisse, ajuste é crucial para PIB crescer 4% em 2021 e auxílio não é essencial
As condições financeiras da economia são muito mais importantes para o crescimento no ano que vem do que a expansão fiscal, diz a economista-chefe do Credit Suisse, Solange Srour. Para ela, a manutenção do auxílio emergencial não é essencial para a expansão do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021, que estima em 4%. Solange considera fundamental assegurar a credibilidade das contas públicas, com respeito ao teto de gastos.
Segundo ela, “o auxílio foi importante, sustentou o consumo e teve impacto em setores muito específicos, como alimentação e construção civil”, ajudando a construir “uma ponte para que não houvesse uma recessão perto de 10% e o desemprego não fosse para 20%. “Mas agora o crescimento tem que ter outras bases”, diz Solange, enfatizando a importância de um ajuste fiscal crível.
Se isso for feito, o câmbio vai se valorizar e haverá uma queda dos juros futuros, afrouxando com isso as condições financeiras. Uma eventual prorrogação do auxílio emergencial tenderia a levar a um desempenho melhor da economia no primeiro trimestre, “mas acaba sendo prejudicial para o crescimento ao longo do ano”, avalia Solange. “A visão de que vamos estender uma parte do gasto deste ano para o próximo vai trazer consequências piores para a atividade econômica, enquanto fazer o ajuste fiscal terá impacto positivo nas condições financeiras, estimulando o consumo e a retomada do investimento”, afirma ela. Na visão de Solange, é possível compatibilizar aumento do gasto social com o teto de gastos e a volta da trajetória fiscal sustentável no ano que vem.
Solange diz que o crescimento de 4% estimado para 2021 não é otimista. A herança estatística que 2020 deixará para o ano que vem é de 2,9%, avalia ela. Isso significa que, se o PIB não crescer nada em relação ao fim deste ano, terminará 2021 com expansão de 2,9%. Nas contas do Credit Suisse, o crescimento trimestral médio será de 0,5% em relação ao anterior. “É uma saída mais lenta de recessão e nós só não vamos conseguir atingir esse número se não fizermos o mínimo esforço fiscal necessário para voltar à trajetória antes da covid”, afirma ela. Para 2020, o banco espera retração do PIB de 4,3%.
Se a agenda fiscal não avançar, porém, o Brasil pode ter problemas, segundo Solange. “O mercado hoje está leniente porque o cenário externo é muito benigno, mas o Brasil não pode contar com isso por dois anos”, observa ela. “Podemos diminuir essa projeção de PIB, que já não é nada maravilhosa, para um nível muito mais baixo, se nada for feito ou se a gente tentar qualquer tipo de quebra do teto.”
Na visão de Solange, o Banco Central (BC) terá que elevar os juros a partir do meio do ano que vem, levando a Selic dos atuais 2% para 4,5% ao ano no fim de 2021. Ela estima que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficará acima da meta neste ano e no próximo 4,4% em 2020 e 4% em 2021, nível superior ao 4% do alvo deste ano e dos 3,75% do ano que vem. Ontem à noite, as projeções do Credit Suisse para 2021 e 2022 foram enviadas aos clientes e serão discutidas hoje, na tradicional apresentação de fim de ano do banco. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: O PIB teve uma forte alta no terceiro trimestre, com influência grande do auxílio emergencial. Como a sra. caracteriza o desempenho da economia em 2020?
Solange Srour: Em 2020 houve essa recuperação forte na segunda metade do ano. Tem o impacto da política fiscal, que sem dúvida foi bastante expansionista. Vamos gastar 8% do PIB no combate à covid, muito mais do que o Brasil poderia ter gasto. Em um ano excepcional, porém, isso não trouxe impactos negativos em termos de falta de credibilidade da política fiscal. Mas acho que, além do auxílio, as medidas de sustentação do emprego e do crédito tiveram impacto muito positivo para essa retomada. Muita gente foca no fim do auxílio, que seria uma grande derrocada no primeiro trimestre, mas houve outras medidas importantes.
“O Brasil precisa aproveitar esse ambiente externo para continuar afrouxando as condições financeiras”
Valor: O que a sra. destacaria?
Solange: A sustentação do emprego foi muito relevante. Não vimos queda tão forte do emprego como poderíamos ter visto. Essas medidas foram tomadas na Europa, e não nos EUA, e o desemprego lá explodiu. A maior parte das medidas expira no fim de dezembro, mas algumas de crédito não, porque o impacto fiscal delas é o que o Tesouro banca, e teremos impacto positivo no começo do ano que vem. O desemprego poderia começar 2021 muito pior do que vai se não fossem essas medidas. O auxílio foi importante, sustentou o consumo e teve impacto em setores muito específicos, como alimentação e construção civil, mas acho que ele não é, olhando para frente, essencial ao crescimento em 2021. Ele construiu uma ponte para que não tivéssemos uma recessão perto de 10% e o desemprego não fosse para 20%. Mas agora o crescimento tem que ter outras bases.
Valor: Quais seriam essas bases?
Solange: A continuidade de condições financeiras frouxas, juros baixos e confiança na economia, que se dá inclusive na taxa de câmbio. A taxa de câmbio depreciada muito além dos nossos pares é um indicador de perda de confiança. Ela não é boa para atividade como um todo, apesar da visão de que o câmbio depreciado ajuda a exportação. Quando há depreciação por falta de credibilidade, principalmente fiscal, o câmbio é deletério. Ele traz desconfiança de que o Brasil vai sustentar sua dívida e manter os juros baixos. Como crescer no ano que vem? Nesse caso, para trazer confiança, uma apreciação é bem-vinda. E é preciso manter os juros baixos, principalmente as taxas longas, que afetam a atividade. Para 2021, as condições financeiras são muito mais importantes do que expansão fiscal. A visão de que vamos estender uma parte do gasto deste ano para o próximo vai trazer consequências piores para a atividade economica, enquanto fazer o ajuste fiscal terá impacto positivo nas condições financeiras, estimulando o consumo e a retomada do investimento.
Valor: Se houver retomada da credibilidade fiscal, isso pode compensar parte ou todo o efeito do fim do auxílio?
Solange: A gente acha que o auxílio não é indispensável para o crescimento, que no nosso cenário será de 4% em 2021. O auxílio pode ser positivo para o primeiro trimestre, mas acaba sendo prejudicial para o crescimento ao longo do ano. Se o governo não estender o auxílio e voltar à trajetória fiscal anterior à covid, isso traz juros mais baixos e câmbio mais apreciado, e as condições financeiras ficam mais frouxas. Se continuar com a expansão fiscal, isso traz um aperto muito maior dessas condições, que melhoraram nas últimas semanas por causa do cenário externo estimulativo, com liquidez abundante. O Brasil precisa aproveitar esse ambiente externo para continuar afrouxando as condições financeiras. Temos visto o país “performar” bem e em termos fiscais nada está decidido, nem para o bem nem para o mal. Continuamos vulneráveis, e essa vulnerabilidade deve permanecer até o fim do ano.
Valor: Quanto do crescimento de 2021 vai se dever ao carregamento estatístico deixado por 2020?
Solange: 2,9%. Temos crescimento de 4% para o ano que vem. Ele pode soar muito otimista quando comparamos com as projeções de média do mercado, mas nessa projeção o PIB cresce 0,5% em média por trimestre. Fizemos um estudo que mostra que, pegando a média de todas as recessões passadas, excluindo a de 2014 até 2016, no ano seguinte à recessão, o PIB cresce em média 1,3% por trimestre. Eu não vejo nada de muito extraordinário nesse 4%, é bem mediano. É uma saída mais lenta de recessão e só não vamos conseguir atingir esse número se não fizermos o mínimo esforço fiscal necessário para voltar à trajetória antes da covid.
Valor: A continuidade do auxílio não seria essencial ao crescimento, mas um programa novo de transferência de renda é necessário?
Solange: A covid vai trazer algumas cicatrizes de médio e longo prazo para a economia, mesmo com a chegada da vacina. A gente vai ter uma parcela da população que não vai voltar rapidamente para o mercado de trabalho, e a recuperação da economia a nível pré-covid não leva menos de dois anos. Claro que neste momento o Brasil deveria aumentar o gasto social, principalmente para incluir aqueles que estão mais tempo fora do mercado de trabalho, e melhorar a questão da educação. Teremos um problema sério de educação nos próximos anos devido à paralisação deste ano. O Brasil precisa lidar com essa situação, mas é possível compatibilizar aumento do gasto social com o teto de gastos e a volta da trajetória fiscal sustentável.
Valor: Como fazer isso?
Solange: Para isso é preciso aprovar a PEC que reduz gastos obrigatórios e fazer uma reformulação dos atuais programas sociais. A proposta do CDPP [Centro de Debates de Políticas Públicas, que prevê a fusão do Bolsa Família com o abono salarial, o salário-família e o seguro defeso] que pode ser levada adiante ao Senado é necessária não só para a gente melhorar a questão de desigualdade, mas também para aumentar o PIB potencial, e é completamente factível, mas a discussão está turva. É como se tivesse que abrir mão do fiscal para melhorar a desigualdade, não deveria ser visto dessa forma. Mas precisamos rever as despesas obrigatórias.
“O maior risco à nossa projeção é a falta de articulação política e a agenda fiscal não andar”
Valor: Para isso a PEC Emergencial seria essencial?
Solange: Vemos a PEC Emergencial como ponte. Ela não vai resolver nenhum problema de forma permanente, mas pode fazer com que o governo sobreviva os próximos dois, três anos sem quebrar o teto e sem gerar uma crise enorme de desconfiança. Dado que é muito difícil emplacar reformas estruturantes na segunda metade do governo, a PEC Emergencial faz com que consigamos chegar até 2023 sem quebrar a regra fiscal e sem entrar em uma crise profunda, e permite aumentar o espaço dentro do teto para aumentar algum gasto social e investimento, mas só conseguirá tudo isso se for mais parruda. A proposta divulgada nesta semana não abre espaço no teto para os gastos que estamos dizendo. Temos que voltar à discussão que foi interrompida de diminuir a carga de trabalho de servidores públicos, desindexar benefícios sociais acima, de dois a três salários mínimos para conseguirmos compatibilizar temporariamente o aumento do gasto social e aumento do investimento com o teto.
Valor: É possível cumprir o teto em 2021?
Solange: É possível, mas não sem problemas. Vai ter que diminuir muito o gasto discricionário. Primeiro vamos ver se o governo vai ganhar a questão da reoneração da folha da pagamentos. Provavelmente essa questão vai ser judicializada. Com o descasamento entre o INPC e o IPCA [o primeiro corrige vários gastos obrigatórios, e o segundo, o teto], vai precisar de uma queda forte dos gastos discricionários. No nosso cenário, o governo aprova a PEC Emergencial mais forte do que a discutida hoje em 2021 e aí o teto é cumprido em 2022. O que eu não consigo ver é o teto sendo cumprido em 2022 sem uma PEC mais abrangente do que essa que está aí.
Valor: Há uma desarticulação política do governo, que não votou a LDO, e dúvidas sobre a prorrogação do auxílio. A incerteza fiscal e a falta de coordenação política colocam viés de baixa no cenário de crescimento para 2021?
Solange: Sim. O grande viés de baixa não é o recrudescimento da doença, que pode afetar o primeiro trimestre com medidas de restrição à mobilidade. O maior risco à nossa projeção é a falta de articulação política e a agenda fiscal não andar. Nosso cenário é de crescimento razoável, mas ele parte do pressuposto de que voltaremos para a trajetória fiscal pré-covid. Essa paralisia da agenda fiscal é muito negativa para a atividade. O mercado hoje está leniente porque o cenário externo é muito benigno, mas o Brasil não pode contar com isso por dois anos.
Ele pode mudar por diversos motivos. Podemos diminuir essa projeção de PIB, que já não é nada maravilhosa, para um nível muito mais baixo, se nada for feito ou se a gente tentar qualquer tipo de quebra do teto.
Valor: O comportamento da inflação preocupa? Vai exigir aumento da Selic?
Solange: Já estamos muito preocupados com a inflação há algum tempo. Temos 4,4% para a alta do IPCA em 2020 e 4% para 2021, também acima da meta [3,75%], e 3,5% para 2022. Por trás da inflação temos um choque de oferta importante de commodities, principalmente agrícolas, mas da parte industrial também, desvalorização grande da taxa de câmbio e o efeito de mudanças de consumo derivadas da pandemia, que pressionou mais alguns setores. Mas o grande componente para as expectativas inflacionárias estarem ameaçadas é a possibilidade de perder a âncora fiscal. No Brasil, choques de oferta e a depreciação cambial começam a passar indiretamente para os demais preços quando não existe credibilidade fiscal. Vimos isso fortemente em 2015, quando o Brasil perdeu essa âncora. Agora começamos a ver números de inflação acima das expectativas e essa pressão de custos, com o IGP-M fechando o ano em quase 25%, vai continuar, porque a boca de jacaré entre IGP-M e IPCA não vai ficar aberta por tanto tempo. Se o câmbio continuar apreciando, o IGP-M vai diminuir, mas o IPCA vai subindo em direção a ele porque a pressão de custos está muito forte e os estoques estão baixos na economia. Parte desse choque será repassada ao IPCA no ano que vem, principalmente no primeiro trimestre. Outro fator que vai fazer a inflação ficar forte em 2021 é a retomada dos serviços. Neste ano, vários preços ficaram congelados, e eles vão voltar no ano que vem. Nesse cenário, a inflação pode não só divergir do centro da meta, mas 2022 também fica em risco. Então o Banco Central precisa reagir para controlar as expectativas. Com a economia retomando, a taxa de juros de 2%, utilizada em um momento extraordinário de parada súbita da oferta, tem que voltar a um nível mais próximo do neutro. No nosso cenário, o BC começa a subir os juros em junho, com 0,5 ponto a cada reunião do Copom, fechando o ano em 4,5%. Nesse período todo revisamos o IPCA para cima, mas mantivemos o ciclo de Selic.
Valor: Quando a relação dívida bruta/PIB começa a se estabilizar?
Solange: Pelos nossos exercícios, mesmo com uma taxa de juros real de 2,5% e 2% de crescimento, só conseguimos estabilizar a relação dívida/PIB em 2030, e mantendo o teto de gastos. Se por algum motivo resolvermos gastar mais fora do teto, ainda que a lei mude para isso ser legal, só conseguimos estabilizar a dívida se o crescimento do PIB for muito maior do que 2%. Para o ano que vem, revimos a projeção de dívida bruta para 96,2% do PIB porque o PIB nominal será maior do que o que tínhamos um mês atrás pela revisão do IBGE e por causa do deflator maior do PIB [para 2020, a previsão é de 94,6% do PIB]. Mas para mim, 95% ou 100% do PIB de dívida não é o grande foco, mas sim a trajetória de gastos. Se melhorarmos essa trajetória via reforma administrativa a redução da vinculação, a gente vai conseguir ter uma trajetória muito melhor da dívida/PIB. Daria para fechar o ano com uma relação até maior se tivéssemos sinalizado controle de gastos, mas estamos fazendo o contrário. Muita gente acha que a dívida pode ficar alta porque os juros vão ficar baixos para sempre, mas isso não é a verdade. A curva já está super esticada, mesmo melhorando nas últimas semanas. Temos que olhar não a Selic de 2%, mas os juros de mercado, que definem como o Tesouro vai conseguir financiar sua dívida.
Valor: Os números indicam um aumento do número de casos e mortes por covid. O recrudescimento da doença é outro grande risco para 2021?
Solange: Esse é um grande risco para o nosso cenário de atividade, tanto para o quarto trimestre, se tivermos um dezembro muito ruim, quanto para o começo do ano que vem. As pessoas esperam que a vacinação seja de fato ampla no primeiro trimestre, mas não vai ser. Se ela começar no primeiro trimestre, só vai conseguir atingir mais a população a partir do segundo e terceiro trimestres. O risco para atividade é de fazer medidas de restrição à mobilidade, mas ainda que a segunda onda seja tão grave como a primeira, um fator que impede desaceleração maior da atividade é o fato de a vacina estar chegando. Ela impede que o recuo da atividade seja tão forte, porque o aumento dos casos não causa um efeito tão negativo nas expectativas de consumidores, empresários e investidores. Estamos vendo isso acontecer nos países desenvolvidos. Os casos subiram fortemente na Europa e nos Estados Unidos e medidas de restrição foram adotadas, mas não vimos uma queda de confiança tão grande. Eles estão sempre alguns meses à frente da gente e a mesma coisa deve acontecer no Brasil.
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