Brasil sairá da pandemia com enorme vulnerabilidade fiscal e chances reduzidas de fazer avançar reformas estruturantes
VALOR
Responsável na América Latina pela gestora de recursos Farallon, que soma US$ 35 bilhões em ativos, Daniel Goldberg, 45 anos, vê o mercado financeiro bastante descolado dos efeitos da pandemia. “Acho que o mercado claramente dá o tema da pandemia por encerrado ou quase lá”, diz. Ex-secretário de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, Goldberg, que também foi presidente do Morgan Stanley, teme que as novas variantes da covid-19 atrasem significativamente a corrida para solucionar o problema sanitário. “Mas isso claramente não está no radar da maioria dos participantes de mercado”, afirma ao Valor.
E o tema o preocupa. O Brasil, segundo dele, deverá sair extremamente vulnerável da pandemia. Ele também vê a agenda de desestatização muito tímida e está cético em relação ao avanço de reformas estruturantes neste ano.
Goldberg tem atuado como um dos conselheiros do apresentador da TV Globo Luciano Huck. Contudo, evita falar sobre uma eventual candidatura para 2022 do apresentador, que também tem se consultado com políticos e com o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central. “Acredito que o cenário de 2022 vai exigir uma candidatura que fuja da polarização e, ao mesmo tempo, apresente um projeto de país.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Com juros baixos e estímulos, a bolsa bateu recordes de alta, apesar da crise política e da pandemia. A euforia se justifica?
Daniel Goldberg: Certamente, o mercado tem uns bolsões de euforia. Como classe de ativos para quem busca retornos de longo prazo, de forma geral, hoje é melhor investir em ações do que em determinados segmentos do mercado de renda fixa. Isso não quer dizer que as ações estão baratas nem que há bolsões de irracionalidade aqui e ali. E acho que há mesmo. Em um mundo de rendimento real negativo, a maioria das alternativas ao “equity” [ação] está proibitiva do ponto de visto de preços. Os prêmios de risco estão muito apertados, mas esse não é o principal problema. O custo de capital baixo é que o determina um nível extremamente tímido de retornos esperados em uma vasta gama de ativos.
Valor: A piora da pandemia não representa um risco?
Goldberg: No que diz respeito aos riscos, acho que o mercado claramente dá o tema da pandemia por encerrado ou quase lá. Enquanto isso, a enorme quantidade de infecções da covid, associada à demora na imunização da população e à pressão seletiva natural, aumenta a chance, a cada semana, de surgimento de uma variante do vírus com desafios adicionais do ponto de vista da imunização ou dos protocolos terapêuticos. As variantes de Manaus e da África do Sul, por exemplo, para além de serem mais transmissíveis, aparentemente têm mutações que as tornam resistentes aos anticorpos monoclonais vistos atualmente como uma das grandes esperanças terapêuticas. E isso claramente não está no radar da maioria dos participantes de mercado. A questão do acesso global às vacinas e as dificuldades de certos países emergentes tampouco estão sendo apreciadas por mercados como o norte-americano, por exemplo.
Valor: O Tesouro injetou centenas de bilhões de reais na economia e o Banco Central adotou uma série de medidas de liquidez que ajudaram a segurar a economia em 2020. O que esperar deste ano?
Goldberg: Apesar do nosso reduzido espaço fiscal, acho difícil evitar algum tipo de alívio adicional, em especial se os lockdowns voltarem. Idealmente, isso teria de vir acompanhando de uma sinalização de que a trajetória da dívida voltará ao controle. O Brasil sairá desta pandemia em condições extremas de vulnerabilidade, em especial no campo fiscal.
Valor: Alguns economistas e gestores criticam a atuação do Banco Central ao reduzir a taxa Selic para 2% ao ano. A inflação está subindo. O regulador errou a mão?
Goldberg: Acho que não. Até agora a atuação do Banco Central me parece impecável. Além disso, é muito louvável o fato de que a equipe do BC esteja conseguindo seguir com uma ambiciosa agenda regulatória, mesmo em meio às demandas da crise. O que o Banco Central colocou de pé no caso do Pix no meio da crise é impressionante. E, claramente, a política de fomento à competição está a todo o vapor. Acho que, no longo prazo, o modelo de “open banking” que essa turma do Banco Central quer implementar vai ser transformacional.
Valor: O que o Brasil precisa fazer para recuperar o crescimento econômico de forma sustentável?
Goldberg: No longo prazo, o que realmente importa é produtividade. O resto é resto. Esse desafio existe no mundo inteiro, onde a tendência há décadas é de ganhos muito tímidos de produtividade e crescimento anêmico. No Brasil, o problema é ainda mais agudo. O esforço de melhoria no nosso ambiente institucional é essencial e, feliz ou infelizmente, requer muito trabalho no “encanamento da economia”. Nosso sistema de regras, leis, incentivos é complexo, e reformas que parecem intuitivas esbarram em desafios de execução. Um bom exemplo é a reforma tributária, talvez a mais importante de todas no campo dos ganhos de produtividade. Entra governo, sai governo, ela continua na lista de desejos… e não sai do papel.
Valor: Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa de fazer reformas, inclusive a tributária, e privatizações, mas até agora avançou pouco nessa agenda. A que o sr. atribui essa dificuldade?
Goldberg: Algumas coisas avançaram. Em alguns casos, por mérito do Executivo, em determinados casos por protagonismo claro do Congresso. Bem ou mal, tivemos a Previdência, novo marco do saneamento, reforma da lei de falências. Mas a agenda de desestatização tem sido muito tímida e a de reformas institucionais continua claramente andando de lado. No caso da privatização da Eletrobras, há claramente uma parcela do sistema político e do funcionalismo que boicota a implementação da venda. No Brasil de hoje, a venda de uma estatal como a Eletrobras é uma corrida de obstáculos que depende de articulação, planejamento, estratégia, habilidade política. Já no caso da reforma tributária, talvez o Executivo devesse ter aproveitado uma reforma imperfeita, mas que estava amadurecendo na linha do que [o economista] Bernard Appy vinha defendendo, em vez de tentar redesenhar as medidas.
Valor: O sr. acredita que, com as discussões sobre a volta do auxílio emergencial, e passadas as eleições no Congresso, as reformas tendem a começar a avançar?
Goldberg: Espero que sim, mas confesso que estou mais cético do que a maioria em relação a esse tema. Não acredito que vá ter reformas estruturantes neste ano. E teremos as eleições presidenciais no ano que vem.
Valor: As mudanças na lei de falências acabam de entrar em vigor. As empresas em recuperação judicial conseguirão atrair mais investidores? Vai ser mais fácil sair desses processos?
Goldberg: Acho que há duas mudanças importantes e muito positivas na lei. A primeira é a que permite a aprovação de um plano alternativo dos credores. Ou seja, acaba a história do acionista sair da recuperação melhor do que o credor que tomou o calote. O poder de barganha dos credores vis-a-vis a empresa devedora muda totalmente. A segunda alteração, na qual eu pessoalmente investi algum tempo nas discussões com o relator na Câmara dos Deputados, Hugo Leal [PSD-RJ, é aquela que regulamenta o empréstimo DIP [“debtor-in-possession”], que tinha um regime falho. Em qualquer lugar do mundo em que a lei de falências funciona, o dinheiro que entra para a empresa já na fase de reorganização é sagrado, tem prioridade absoluta. De forma geral, acho sim que essas mudanças vão atrair mais capital para o financiamento das reestruturações.
Valor: O mercado de crédito privado passou por um grande estresse em 2020. Que diagnóstico o sr. faz dele agora? Veremos muitas empresas com dificuldades para gerir suas dívidas?
Goldberg: A crise da covid-19 foi muito peculiar. É extremamente simétrica do ponto de vista geográfico – todos os mercados sofreram, nas mais diversas jurisdições -, mas por outro lado incrivelmente assimétrica na forma como diferentes setores da economia foram afetados. De forma geral, a atividade vai voltar forte, mas setores diretamente afetados pela covid, como aqueles ligados à mobilidade urbana, hotelaria, transporte aéreo e eventos, vão continuar sofrendo e muitas dessas companhias vão acabar tendo de reestruturar suas dívidas em juízo.
Valor: O sr. tem atuado como um conselheiro do apresentador Luciano Huck. Ele está disposto a disputar a Presidência em 2022?
Goldberg: Na verdade, o Luciano é uma pessoa que gosta de escutar. É um traço distintivo da personalidade dele. Nos últimos anos, ele tem se dedicado a estudar os enormes desafios do Brasil e discutir políticas públicas que melhorem a vida as pessoas. Assim como fala comigo, fala com muita gente – de diferentes matizes ideológicas e formações técnicas. Esse círculo de conversas tem girado em torno de diversos núcleos – saúde, educação, política urbana, infraestrutura, tecnologia…
Valor: Quais as chances de ele sair candidato a presidente? Como vê o cenário para 2022?
Goldberg: Acredito que o cenário de 2022 vai exigir uma candidatura que fuja da polarização e, ao mesmo tempo, apresente um projeto de país. Pouca gente rodou o Brasil como o Luciano – a despeito de uma eventual candidatura, o fato é que ele já se tornou uma liderança cívica, reconhecido no terceiro setor e pelos movimentos comunitários. As pessoas não fazem ideia do quanto ele tem se engajado em atividades transformadoras, procurando insistir nesse tema da oportunidade e inclusão. Mas a eleição está longe. Luciano fez muito bem em não fomentar discussões pré-eleitorais.
Valor: Quem participa do grupo que está ajudando o apresentador a discutir um projeto?
Goldberg: É bom reiterar que hoje não há projeto eleitoral. Há, sim, um movimento para pensar o cenário pós-pandemia e um caminho moderno para o Brasil. Não me cabe dar os nomes das pessoas que têm investido tempo em pensar esses desafios, mas o que posso dizer que há muita gente séria e comprometida em ajudar, de diferentes formas, a melhorar o país.
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