Blog do IBRE/FGV
Em novembro de 2020 preparei para este blog um longo comentário ao livro de Ciro Gomes “Projeto Nacional: O dever da esperança”. O engenheiro Felipe Augusto Machado fez um comentário crítico ao meu texto original e eu respondi neste blog. Felipe publicou uma tréplica. Há três pontos na tréplica de Felipe que requerem algum reparo. O tema da comparação da República Velha com o período do nacional desenvolvimentismo, o tema do investimento social no período do nacional desenvolvimentismo e o tema das estratégias de desenvolvimento.
Experiência de crescimento
Argumento que as taxas de crescimento da República Velha (RV) estavam subestimadas e as do nacional desenvolvimentismo (ND) estavam superestimadas. Há dois motivos. Primeiro, a transição do artesanato para a indústria, como tratei em meu texto. Segundo, a urbanização. O trabalhador na agricultura produz para sua própria alimentação e o trabalhador urbano adquire a alimentação no mercado. Parte da produção agrícola em uma economia rural não aparece nas estatísticas oficiais, ou é subestimada. A subestimativa pode ser elevada. Por exemplo, a participação do item alimentação domiciliar na cesta de consumo das famílias brasileiras com renda de até 2,5 salários mínimos é hoje de 25%.
Felipe lembra que talvez a subestimação do PIB se refira a um crescimento não contabilizado que ocorrera antes de 1900. Pode ser, pode não ser. No entanto, como o ritmo de industrialização e de urbanização foi se acelerando nas últimas décadas do século XIX e entrou pelo século XX, é razoável imaginar que parcela significativa da subestimação ocorreu nas três primeiras décadas do século XX. Mas certamente esse é um tema para pesquisa futura.
Um ponto importante que não enfatizei em meu texto é o legado de um período sobre o outro. A figura apresenta a evolução do PIB per capita brasileiro (em escala logarítmica) de 1900 até 2018. Assinalei os anos de 1916, 1929, 1980 e 1992.
Note que a transição do período da RV para o período do ND foi suave. Mesmo em meio à grande depressão, a economia se recuperou rapidamente. Ou seja, a RV não legou para o período posterior um fardo pesado a ser carregado. Por outro lado, o período do ND foi sucedido pela década perdida. Claramente 1980 é um pico da série, que foi revertido em seguida e somente foi suplantado em 1994, quase após década e meia. Se o analista acredita que a estagnação entre 1980 e 1992 deve-se a legados do período do ND, como é o meu caso, mas não o de Felipe, a medida do desempenho do período muda. Por exemplo, utilizando a série de Maddison vimos no corpo do trabalho que somente o Japão cresceu mais do que o Brasil entre 1929 e 1980. Se considerarmos o período entre 1929 e 1992, há 12 países da base de Maddison com desempenho melhor.
Transparece da figura também que a aceleração na trajetória de crescimento ocorreu antes do início do período do ND: o crescimento do PIB per capita entre 1916 e 1929 foi de 4% ao ano. Há uma quebra estrutural na série de crescimento da economia brasileira em 1916 e outra quebra em 1980. O início da década de 30 não representou quebra na série de PIB per capita da economia brasileira. Tema para pesquisa futura.
Com relação às ferrovias, em nenhum momento afirmei que o crescimento do período do ND deve-se às ferrovias. Crescimento é um fenômeno complexo que se deve a diversos fatores. Certamente as ferrovias não foram o fator mais importante. Somente ressaltei a importância das ferrovias para o crescimento no período da RV e no período posterior. Esse fato contrasta com a afirmação do livro de Ciro de que “O capital privado, lá como hoje, era pequeno e originado da produção agrícola, conservador e arisco à novidade modernizante”.[1] Esse capital privado produziu toda a geração de eletricidade até os anos 30, toda a telefonia, os serviços de transportes urbanos, bem como boa parcela das ferrovias. Tudo pelo setor privado, com o auxílio de bons marcos regulatórios e de um mercado de capitais bem moderno como descrito nas referências que estão no meu texto original. E, como vimos, o legado da RV para o ND não foi ruim. Havia uma base a partir da qual o crescimento do período posterior se fez.
Educação
O Brasil gastava, nos anos 50, uma parcela aproximada de 1,8% do PIB com educação. Ocorre que, com o ensino fundamental, o gasto era de 1% do PIB. O gasto do governo dos países asiáticos, em períodos nos quais a renda per capita deles era igual à nossa, era da ordem de 2% do PIB.[2] E essa estatística refere-se ao gasto com fundamental. Nesse período, nos países asiáticos, o ensino médio e o superior eram pagos pelas famílias. Na maioria dos países asiáticos, o ensino superior ainda é pago.
Além de eles gastarem o dobro do que gastávamos com o ensino fundamental, há outra diferença muito mais importante. No meu texto original, apresento na figura 19 as taxas brutas de matrícula. Elas eram escandalosamente baixas no período do nacional desenvolvimentismo. Sabemos que as mesmas taxas de matrícula eram elevadas nos países asiáticos.
Não há como fugir à conclusão de que, após cinco décadas de crescimento elevado, nossos indicadores sociais eram desastrosos. Felipe avalia que foi o melhor possível. Eu discordo de Felipe. Para mim houve uma priorização do subsídio público ao investimento em capital físico – investimento que, com regulação adequada, poderia ser feito pelo setor privado (como a experiência da RV demonstra) – e, portanto, deixamos a área social de lado. Trata-se do que chamei de crescimento com pés de barro.
Modelo de desenvolvimento
Lendo a resposta de Felipe, o leitor que não leu meus textos pode achar que eu subestimo o valor econômico da indústria. Não é o caso. O que me parece ser verdadeiro é que em geral o valor econômico para a sociedade do investimento na indústria não é superior ao retorno privado da atividade. Ou seja, me parece que não há externalidades positivas apreciáveis associadas ao investimento na indústria. Ao menos não conheço trabalho empírico que documente tais externalidades.
Isso significa que não deve haver política de desenvolvimento setorial? Em geral tenho certo ceticismo. Mas não tenho uma visão fechada ou ideológica nesse tema. Aqui é melhor eu reproduzir o que já escrevi no texto maior (às vezes tenho a impressão de que Felipe, no debate comigo, não leu com atenção o que escrevi).
“Em seguida, Ciro passa a discutir o tema da política industrial. Propõe que haja políticas para alguns setores. Antes, porém, um pequeno reparo. À página 147, Ciro, baseando-se em dados da Fiesp, argumenta que a participação da indústria no PIB chegou a ser de 35,9%. Como tratei acima, esse dado está metodologicamente errado. O máximo da participação da indústria no PIB, como está claro na figura 8, foi em meados dos anos 1980: ficou pouco abaixo de 25%. Não farei uma análise exaustiva de cada proposta e de cada setor que Ciro sugere que sejam alvo de políticas de desenvolvimento industrial. Penso ser mais produtivo discutir o que me parece deva ser o princípio geral no desenho de uma política industrial.
A figura[3] é genial. Ela resume minha visão do tema. Não há motivo para termos restrições ideológicas. Se houver justificativa, é perfeitamente possível atuar. É importante que haja um diagnóstico correto e que o desenho do programa seja de boa qualidade. A figura 17 estabelece alguns princípios. Se nada sabemos, melhor não interferir. A intervenção precisa ser precedida de alguma justificativa. Segundo, é muito importante que o desenho da intervenção seja muito cuidadoso. Mesmo que ela seja justificada, não há nenhuma garantia de que a intervenção funcionará. A experiência brasileira sugere que nada fazer é melhor do que fazer mal.”
De fato, no final de seu comentário Felipe escreveu:
“Pessôa, ao explicar a visão desenvolvimentista de que os países do leste asiático estimularam a indústria e a construção de conglomerados empresariais para dominar as tecnologias mais sofisticadas, afirmou que “em certa medida a política das empresas campeãs nacionais praticada em passado recente tinha essa motivação”. Em minha dissertação, apurei que as políticas industriais implementadas entre 2004 e 2014, por meio dos desembolsos do BNDES, não estiveram voltadas para atividades sofisticadas”.
Como apontado na dissertação de Felipe, houve problema grave no desenho (e penso que de implantação também) de parte, ao menos, da política de desenvolvimento adotada no período do petismo. No meu texto completo, apresento referências que documentam que não houve nos estaleiros, entre 2000 e 2011, grandes ganhos de eficiência, em que pese este ter sido um setor foco da política industrial da primeira década do século. Em geral, como apontado no texto de Dani Rodrik a que me referi e caracterizado no fluxograma acima, a política requer uma justificativa. E mesmo se houver a justificativa, é necessário que a qualidade da implantação seja elevada. Caso contrário haverá somente desperdício.
Finalmente, resta a dúvida dos motivos do sucesso dos asiáticos. Felipe diria que o desenvolvimento industrial justifica o enorme crescimento. Eu diria que o crescimento industrial é fruto de muito trabalho, poupança e investimento, pelo Estado e pelas famílias, em educação. A enorme capacidade daquelas sociedades de acumularem recursos, seja capital físico, seja capital humano, seria a causa próxima do crescimento. O desenvolvimento industrial seria consequência da dotação de fatores, que nesses países se alteram rapidamente em direção à indústria de transformação: se tornam países ricos em capital físico e humano e pobres em recursos naturais.
O problema de apontar a ação estatal como a causa do desenvolvimento dos tigres asiáticos é o observador incorrer em viés de confirmação. É fato que eles praticaram muita política industrial e cresceram. Mas inúmeros outros países o fizeram e colheram somente inflação e estagnação.
Felipe considera que “muito trabalho” significa uma maior disposição cultural ao trabalho dessas sociedades, e critica o que seria um argumento meu como culturalista e possivelmente preconceituoso. Nunca escrevi isso. Muito trabalho para mim significa uma estrutura de incentivos que estimula esse comportamento das pessoas. A estrutura de incentivos seria a causa última do crescimento ou a causa distante (para contrastar com causas próximas). Qualquer pessoa vivendo sob a mesma estrutura de incentivos se comportaria da mesma forma. A questão é saber por que os asiáticos escolheram essa estrutura de incentivos e nós não o fizemos.
Para Felipe, se entendi corretamente, o desenvolvimento é fruto de um ato de vontade do Estado, que se organiza e adota as políticas corretas. Para mim, desenvolvimento é fruto de as instituições promoverem um adequado alinhamento entre os retornos sociais e privados das ações dos agentes econômicos. O desenvolvimento da indústria e o crescimento econômica seriam resultados.
[1] Página 37.
[2] Como a documentado na figura 15 de meu texto, o gasto público em educação da Coreia do Sul nos anos 70, quando o PIB per capita era inferior ao brasileiro, girava em torno de 3%.
[3] Fluxograma preparado por Alex da Matta. Agradeço a Leonardo Monastério que descobriu a autoria. Veja https://twitter.com/MoraisMatta/status/1120396218314764292.
Link da publicação: https://blogdoibre.fgv.br/posts/nacional-desenvolvimentismo-resposta-treplica-de-felipe-augusto-machado
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