Valor Econômico
O Brasil precisará de anos de políticas educacionais específicas para recuperar o aprendizado perdido
Estamos chegando ao fundo do poço. Quase 300 mil brasileiros já morreram de covid-19, o sistema de saúde colapsou, não há mais vagas nas UTIs e as pessoas estão morrendo na fila de espera. A situação é dramática. A atividade econômica está se retraindo rapidamente com as mortes e as políticas de distanciamento, o que está aumentando a pobreza extrema. Ainda não sabemos quando e como tudo isso vai acabar, mas sabemos que algum dia grande parte da população será vacinada e a vida voltará ao novo normal. Quando isso ocorrer, o que deverá ser feito para atenuar os prejuízos de longo prazo que a pandemia está provocando nas crianças e jovens brasileiros?
Em primeiro lugar, é importante lembrar que avanços no desenvolvimento infantil, na qualidade da educação e na saúde de toda a população são fundamentais para aumentar o crescimento econômico, que está anêmico no Brasil há muito tempo. Portanto, se nada for feito para atenuar os efeitos da pandemia, haverá grandes perdas, não somente para as nossas crianças e jovens, mas também para o crescimento econômico no longo prazo.
Brasil precisará de anos de políticas educacionais específicas para recuperar todo o aprendizado perdido
Para evitar que isso ocorra, teremos que agir em várias frentes. Em termos educacionais, um estudo lançado essa semana pelo Banco Mundial projetou as perdas que poderão ocorrer devido à pandemia1. A pesquisa mostra que, mesmo antes da pandemia, metade dos jovens brasileiros de 15 anos de idade não conseguiam ler e compreender textos simples. Isso significa que os nossos jovens tinham o equivalente a dois anos a menos de escolaridade do que os dos países da OCDE. Além disso, a desigualdade era grande, pois as crianças com melhor desempenho tinham o equivalente a 2 anos e meio de estudo a mais do que as crianças com mais dificuldades. Isso explica parte significativa da diferença de produtividade existente entre o Brasil os países da OCDE.
O fechamento das escolas durante a pandemia prejudicará ainda mais as crianças e jovens mais vulneráveis, especialmente as que estão em idade de aprender a ler e escrever, o que vai aumentar a deficiência dos jovens brasileiros com a leitura. E muitas crianças que tinham aprendido a ler desaprenderam pela falta de atividades escolares. Por exemplo, dados do IBGE (Pnad-Covid) mostram que 17% das crianças negras de 6 anos de idade não realizaram atividades escolares à distância no passado. Além disso, a saúde mental e as habilidades socioemocionais também foram muito afetadas pela pandemia e precisarão ser recuperadas. Como fazê-lo?
Precisaremos de anos de políticas educacionais específicas para recuperar o aprendizado perdido. Após o fim da pandemia, as crianças no ensino fundamental terão que ficar em tempo integral nas escolas para ter aulas de reforço, atividades físicas e lúdicas. Isso poderia ser feito sem contratar muitos professores adicionais se as crianças frequentassem aulas em dois turnos, cursando uma série pela manhã e a série do ano anterior à tarde, por exemplo. Isso seria possível porque o tamanho das turmas diminuiu muito na última década, como resultado da transição demográfica, que diminuiu bastante o número de crianças no Brasil. Por exemplo, o número de crianças frequentando o 2º ano do ensino fundamental passou de 5,5 milhões em 1995 para 2,8 milhões em 2018.
Em termos de saúde, o SUS está dando uma contribuição essencial ao lidar com as consultas e internações por covid-19 em todo o país. Se não houvesse o SUS, a situação estaria ainda pior. Mas muitas consultas, exames pré-natais e visitas da Estratégia Saúde da Família estão sendo adiadas por conta da pandemia. Será necessário um esforço extraordinário para atualizar essas consultas e visitas e avaliar todos os prejuízos no desenvolvimento infantil e na saúde das crianças, adultos e idosos.
Além disso, ao final da pandemia os profissionais da saúde terão que lidar com o acúmulo de cirurgias que foram adiadas e doenças que foram agravadas por falta de tratamento nesse período. Por fim, parte dos mais de 10 milhões de brasileiros que contraíram covid terão problemas de saúde no longo prazo, a chamada “covid longa”.
Com relação ao mercado de trabalho, milhões de jovens que se formaram no ensino médio nos últimos anos não estão podendo experimentar as diferentes atividades profissionais e, portanto, receberão salários menores e serão menos produtivos ao longo da vida. Será necessário oferecer alternativas para esses jovens, como programas de formação profissional, especialmente focados em novos negócios com o uso de novas tecnologias. E será necessário atuar fortemente para reduzir a discriminação contra os negros no mercado de trabalho, através de políticas específicas de contratação, treinamento e promoção, para que não percamos o seu potencial produtivo.
No caso de assistência social, será necessário mudar o programa Bolsa Família. O programa já foi excelente para diminuir a pobreza extrema, situação em que as famílias não têm dinheiro nem para se alimentar. Entretanto, a cobertura do programa foi diminuindo com o tempo por questões orçamentárias e com o aumento do número de pobres. Além disso, o valor atual é insuficiente para permitir um desenvolvimento infantil adequado para as crianças. Assim, será necessário usar o aplicativo desenvolvido pelo governo para encontrar todas as famílias pobres e aumentar o valor do benefício para aquelas com crianças.
E será preciso fazer tudo isso com responsabilidade fiscal, já que a dívida pública aumentou muito e poderá em breve atingir um nível temerário. Para isso será necessária uma reforma ampla na carreira do setor público, atrelando a remuneração ao longo da carreira a avaliações de desempenho, mas sem permitir demissões sem justa causa. Além disso, precisamos de uma reforma tributária para que todos os que recebem rendimentos paguem a mesma alíquota do imposto de renda, independentemente da fonte.
Mas não podemos esperar até 2023 para realizar todas essas mudanças, caso contrário as perdas ficarão ainda mais difíceis de serem revertidas, o que aumentará de vez a desigualdade e diminuirá o crescimento no longo prazo. Assim, será necessário começar essas políticas de forma descentralizada, através dos Estados e municípios, que receberam muitas transferências no ano passado, têm papel importante na provisão de educação, saúde e assistência e vontade de melhorar a vida dos brasileiros.
1 “Acting Now to Protec the Human Capital of Our Children” Banco Mundial
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/depois-da-pandemia.ghtml
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