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Só a união das vítimas da corrupção é capaz de mudar o jogo

NEXO

Há dois anos foi lançado o livro “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas” (Portfolio-Penguin), que organizei e do qual sou coautora. Nele, a operação italiana é descrita e analisada, 24 anos após seu início, por dois dos magistrados que a conduziram – Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo. À época em que foi escrito, a operação brasileira estava no seu quinto ano, e foi analisada pelo então juiz Sergio Moro, em um capítulo, e pelos procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, em outro. Um generoso prefácio foi escrito pelo ministro Luís Roberto Barroso, e eu me encarreguei de fazer um survey sobre teoria da corrupção e uma análise dos impactos econômicos da corrupção no Brasil e na Itália. Revisito, aqui, algumas das ideias presentes no livro à luz do fim da Lava Jato e das decisões recentes do STF (Supremo Tribunal Federal) a ela relacionadas, com ênfase no papel do apoio da sociedade a operações contra a corrupção.

Dediquei o livro “às vítimas (difusas e anônimas) da corrupção”, e a defesa dessas vítimas – os cidadãos comuns – é o fio que une todos os capítulos. É sobre o cidadão comum que recaem mais pesadamente a carga excessiva de impostos e os efeitos nocivos do elevado endividamento de Estados inchados. É o cidadão comum que recebe em troca serviços públicos degradados pelos desvios de recursos que ocorrem com a corrupção. Ele fica indignado por pagar muito e receber pouco, mas os “desvios” permanecem convenientemente envoltos em densa névoa, dificultando a sua apuração e punição. Assim são os crimes de corrupção: prejudicam muitas pessoas, mas nenhuma em particular. Só a união das vítimas, ainda que difusas e anônimas, é capaz de mudar o jogo e suas regras. Qualquer distração pode ser fatal, dando início a avalanches, como revelam os dois episódios que descrevo a seguir.

No dia 13 de julho de 1994, enquanto os italianos torciam pela sua “Squadra Azzurra” contra a Bulgária, na semifinal da Copa do Mundo que definiria o adversário do Brasil na final, Alfredo Biondi, então ministro da Justiça, apresentava ao Conselho de Ministros o decreto que ficou conhecido como Decreto Biondi ou “Salva Ladri” (salva ladrões). Os jornais do dia seguinte, empolgados com a classificação da Itália, pouco ou nenhum destaque deram à notícia. Começava, assim, a reação do sistema político que pôs fim à operação Mani Pulite. Junto com duas anistias, uma fiscal e outra a empresas envolvidas com corrupção, o decreto impedia a prisão preventiva para investigados em crimes de corrupção, extorsão, peculato, financiamento ilícito de partidos, entre outros. De aplicação imediata, fez com que cerca de 3.000 presos fossem liberados, dentre os quais estavam algumas centenas de investigados pela Mani Pulite. Devido à forte reação dos magistrados que conduziam a operação e da população, que foi às ruas de Milão protestar, o decreto (que era inconstitucional) acabou não sendo sancionado pelo parlamento e perdeu a validade. Mas o estrago estava feito: inaugurava-se um período de 15 anos de sucessivos retrocessos na identificação e punição dos crimes de corrupção e de limitação das ações do Judiciário.

Ao mesmo tempo, uma campanha difamatória contra o Judiciário, comandada pelos defensores dos acusados, minou o apoio da população à operação. O então magistrado Gherardo Colombo, por exemplo, foi vítima de tentativa de depósito em seu nome na Suíça. Dossiês com falsas informações foram fartamente distribuídos à imprensa. O ataque tóxico encontrou terreno fértil em boa parte dos jornais, à época dependentes do financiamento do Estado e das grandes empresas envolvidas em corrupção. A partir de então sofreu a economia do país, que se fechou aos investimentos externos, perdeu eficiência e acabou entrando em estagnação. Só nos últimos anos a agenda de reformas foi retomada, e ganha impulso agora, sob a liderança de Mario Draghi, um ferrenho defensor da integridade e eficiência nas obras e serviços públicos.

Durante os dois anos anteriores, a operação italiana incriminara mais de 4.000 pessoas, sendo 4 ex-primeiros-ministros, cerca de 130 parlamentares, 12 ministros de Estado e empresários de grandes empresas como ENI, Enel, Fiat, Ferruzzi, etc. Se fossem mantidas as proporções por habitante, teríamos no Brasil cerca de 16 mil processos e 3.000 mandados de prisão. Aqui, na 13ª Vara Federal de Curitiba, sob o comando dos juízes Moro, Hardt e Bonat, foram denunciadas cerca de 550 pessoas, tendo 174 sido condenadas. Além dessas, 102 pessoas foram denunciadas ao STF em virtude do foro privilegiado, gerando 9 ações penais e apenas 4 condenações e 2 absolvições. Os demais casos encontram-se em fases diversas de andamento.

O Brasil venceu a Itália naquela final da Copa que, por ironia do destino, ocorreu na cidade de Pasadena, palco de um dos casos emblemáticos de corrupção investigados décadas à frente pela operação Lava Jato. Desde o início, a Lava Jato conviveu com avanços e retrocessos institucionais, que facilitaram ou dificultaram seus trabalhos. Assistimos a retrocessos vindos do STF, como a remessa de casos de corrupção a tribunais eleitorais, menos estruturados para julgar casos complexos, a revogação do precedente que permitia a execução da condenação em segunda instância, a anulação de condenações criminais com base em tecnicalidades ou com argumentos pouco substanciais. No Executivo, tivemos retrocessos como a interferência em órgãos de controle e, no Legislativo, ações como a aprovação de uma lei de abuso de autoridade com efeitos intimidatórios contra juízes e promotores. O apoio maciço da população e a existência de uma imprensa livre e competente garantiram, no entanto, a continuidade da operação até o início da pandemia. Desde então, impedida de ir às ruas, a sociedade abriu um flanco fatal, imediatamente aproveitado pelos que se beneficiam da corrupção. Ainda não sabemos qual a extensão do deplorável retrocesso institucional ora em andamento.

Operações como a Mani Pulite e a Lava Jato, que se diferenciam das demais por tratarem de casos sistêmicos, não são feitas para acabar com a corrupção. Elas não têm instrumentos para mudar as leis que permitem a alguns a apropriação do dinheiro público. Seu papel é aplicar as penas previstas na legislação e, ao desvendar a realidade, mostrar às vítimas difusas o tamanho do estelionato a elas imposto pelos ocupantes dos três Poderes. Em geral, terminam por mostrar mais: que a impunidade dos poderosos é intocável, faz parte da regra do jogo.

A Lava Jato mostrou também o mais completo despreparo da Justiça brasileira para identificar e punir casos de corrupção. O que as leis permitem que as primeiras instâncias façam com eficiência desanda nos escaninhos insondáveis de dúvidas sobre a própria existência da Justiça nas demais, revelando que o crime compensa e que os assaltantes dos cofres públicos podem dormir em paz: jamais serão punidos. A sociedade, desamparada e perplexa, só pode contar com a força da sua união para mudar as regras desse jogo viciado. Caso desista, o país afundará cada vez mais na areia movediça da pobreza, desigualdade e corrupção.

Link da publicação: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/S%C3%B3-a-uni%C3%A3o-das-v%C3%ADtimas-da-corrup%C3%A7%C3%A3o-%C3%A9-capaz-de-mudar-o-jogo

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Sobre o autor

Cristina Pinotti