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Para economistas, decisão do STF tem o mérito de pressionar o governo em tema importante, mas desconsidera políticas sociais vigentes e desafios fiscais
A determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o governo defina, até 2022, os valores de um programa de renda básica nacional aos mais pobres tem o mérito de pressionar por uma decisão em um tema importante do qual a gestão Jair Bolsonaro – mas não só ela – se esquiva, avaliam especialistas. Por outro lado, do modo como foi feito, desconsidera realidades das políticas sociais vigentes e os desafios fiscais, criticam alguns.
A decisão do STF responde a uma ação da Defensoria Pública da União (DPU), sob o argumento de que, passados mais de 17 anos da lei que criou a Renda Básica de Cidadania, o Executivo não regulamentou o benefício. Todos os ministros foram favoráveis ao pagamento, mas alguns queriam fixar um valor temporário de um salário mínimo e sem distinção socioeconômica. Prevaleceu, porém, a tese de que apenas a população em situação de pobreza e extrema pobreza será elegível.
Para Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), a medida “certamente pressiona o governo” e tem implicações concretas. “Atualmente, o Bolsa Família não é um benefício ao qual as pessoas têm direito e o governo tem a obrigação de prover. É um programa que, para que a pessoa ganhe o benefício, é preciso tanto que ela seja elegível quanto que o governo tenha orçamento. Com essa mudança, o governo teria obrigação de pagar um benefício mínimo”, observa.
Marcelo Neri, diretor do FGV Social, diz que, se a busca for por um “Bolsa Família 2.0”, é meritória. Uma renda mínima universal e incondicional, por outro lado, seria “um erro de rota”, avalia. Primeiro, porque ele estima que custaria 19 vezes mais que um programa bem focalizado. “Além disso, o foco nas crianças, suas mães e nas condicionalidades é uma força do Bolsa Família atual, que deve ser melhorado, e não sucateado.”
Naercio Menezes Filho, professor titular no Insper e associado na FEA-USP, concorda que um benefício universal “não é muito bom, pois o governo terá que fazer uma transferência reduzida para cada família, para não estourar o limite de gastos”. No seu entendimento, como a renda básica já havia sido aprovada no Congresso, o STF está correto em obrigar o governo a implementá-la. “Não entendo por que demorou tanto tempo.”
Ele diz que o governo deveria aproveitar a decisão do STF para implementar o melhor programa possível. O ideal, segundo Naercio, seria uma transferência maior apenas para famílias pobres, especialmente as com crianças pequenas (zero a seis anos). Se o programa tiver de ser universal, uma solução seria fazer uma transferência pequena para todas as famílias e usar o Bolsa Família para complementar, com foco nas famílias pobres com crianças, sugere. “A transferência universal serviria para acabar com a pobreza extrema e o Bolsa Família acabaria com a pobreza geral para famílias com crianças.”
Naercio destaca ainda que as transferências deveriam ter um valor diferenciado para cada Estado, dependendo do custo de vida (ver quadro acima).
Pelo voto condutor no STF, do ministro Gilmar Mendes, o governo deverá estabelecer um valor “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde”. Cálculos do Ministério da Cidadania apontam que uma parcela de meio salário mínimo (hoje R$ 522) exigiria cerca de R$ 195 bilhões ao ano. Duque, da FGV, reconhece que o impacto fiscal da decisão do STF será elevado. “Caberá ao governo encaixar tal novo gasto em um Orçamento já bem apertado”, afirma.
Na avaliação preliminar de Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, a decisão do STF “está mais para canetada”, sem pensar nas consequências fiscais e de desenho do programa. Mendes é um dos propositores – com Vinícius Botelho e Fernando Veloso e patrocínio do Centro de Debate de Políticas Públicas – do Programa de Responsabilidade Social, que prevê o redesenho dos programas sociais e um “seguro” para informais, respeitando as regras fiscais.
Na opinião do economista, o STF legislou. “As falas dos ministros foram todas no sentido do mérito da matéria – como é importante ajudar os pobres -, e não da questão jurídica posta ao STF. Ao falar do mérito, não houve cuidado em analisar os programas que já existem, sua abrangência, vantagens e desvantagens, tampouco de autolimitação do STF para não invadir competências do Executivo e do Legislativo. O debate se deu como se vivêssemos em um país em que não existe nenhum programa de transferência de renda.”
Tatiana Roque, vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), contesta a visão de “canetada”, porque a lei que determina o pagamento já existe. “É uma questão de regulamentação”, afirma. Partir do Bolsa Família é positivo, mas alguns adendos são necessários, observa. “Um deles é tornar o programa mais simples em suas regras e valores, que têm de ser iguais para todos, apontando para a universalidade. Com recorte de renda, obviamente, mas sem tantos casos distintos para elegibilidade. Além disso, tem que ser incondicional, sem fila e com linhas de entrada que cresçam.
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