ESTADÃO
Em seu fascínio por metáforas, Jorge Luís Borges escreveu: “Se não me engano, os chineses chamam o mundo de as dez mil coisas ou – e isso depende do gosto e da fantasia do tradutor – os dez mil seres”. Segundo uma extensão dessa metáfora, atribuída a Lao-tsé, “a natureza trata a miríade de seres como cães vadios”. Podem ser cruéis com “os seres” não só os movimentos das águas, dos ventos, da terra e do clima, como vem demonstrando ao mundo a covid-19.
Tem sido extraordinária a resposta da ciência aplicada a desenvolver vacinas eficazes, que reduzem mortes e a disseminação do vírus. Ainda assim, as consequências econômicas, sociais e políticas da pandemia estarão conosco por anos à frente, com particular relevância para países em desenvolvimento, como o Brasil, nas áreas de saúde pública e de educação. Desta trata este artigo, dadas suas relevância e urgência para evitar que nosso futuro seja, mais uma vez, adiado.
Em imperdível palestra (TEDx – Todos pela Educação), Priscila Cruz relata a frase, dura e entristecedora, que ouviu quando, como voluntária, ajudava alunos do ensino fundamental com dificuldades na aprendizagem: “Tia, estou indo embora, educação não é para mim”. A frase não surpreenderá quem tenha tomado conhecimento dos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização ou do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional; ou dos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), ou ainda do desempenho de alunos brasileiros nos testes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) da OCDE.
Houve avanços, mas o quadro resta dramático. Na faixa etária de 15 a 17 anos, cerca de 38% dos alunos que deveriam estar cursando o ensino médio (EM) não o fazem, porque ou ainda cursam o ensino fundamental (EF), ou abandonaram o EF antes de terminá-lo, ou concluíram o EF mas desistiram de ingressar no EM, ou ainda porque ingressaram no EM mas o abandonaram no 1.º ou no 2.º ano.
Em 2019, 30% dos “jovens” de 25 anos de idade não haviam conseguido completar o EM. A maioria dos 70% que o fizeram se colocam no mercado de trabalho sem adquirir as competências adequadas. Apenas cerca de 20% dos jovens com EM completo conseguem entrar em curso superior. Nas universidades federais, 30% dos que ingressam abandonam os estudos entre o primeiro e o terceiro ano. Nas grandes universidades privadas, o porcentual é de 60%. Grande número das pessoas com educação superior no Brasil trabalha em atividades que só requerem competências de um razoável nível médio. E enquanto entre nós 11% das matrículas de EM são de educação profissional e tecnológica, na OCDE são 42%.
A essas deficiências preexistentes se somam os efeitos da pandemia, que as exacerbou. Serão cicatrizes traumáticas, em particular para o futuro do número expressivo de alunos que já estavam ficando para trás antes da pandemia. Não se trata mais de saber se a desigualdade educacional e de renda se vai ampliar, mas, sim, como mitigar sua extensão.
Na raiz de nossos problemas de pobreza e desigualdade de renda e riqueza está a questão fundamental a ser atacada: a desigualdade de oportunidades, que surge já no nascimento. É função de políticas públicas nas áreas de educação (e de saúde) procurar reduzir esses diferenciais nos anos iniciais de vida das crianças. Como é hoje amplamente reconhecido por especialistas em educação no Brasil e no mundo.
Barack Obama afirmou repetidas vezes que educação de qualidade mundial era pré-requisito para o sucesso de qualquer país. “Countries that out-educate us today will out-compete us tomorrow”, explicava. Joe Biden, em discurso proferido por ocasião de seus primeiros cem dias de governo, adiciona algo relevante para um país como o Brasil. Estudos conduzidos ao longo dos últimos dez anos por grandes universidades do seu país, aponta Biden, mostram que acrescer dois anos de educação de alta qualidade para cada criança de 3 e de 4 anos de idade, não importa de que background, torna-as capazes de competir ao longo dos 12 anos subsequentes e melhora exponencialmente suas perspectivas de graduação posterior.
Pena que educação e saúde não pareçam constituir áreas de interesse construtivo da atual liderança política do País. Talvez o debate público em 2022 possa levar candidatos a procurar, em prazo hábil, agregar equipes competentes nessas áreas. E a promover discussão apta a permitir diagnóstico sobre a situação atual, como a ela chegamos e, principalmente, a descortinar como avançar com a necessária visão de longo prazo sobre nosso futuro.
Não são propriamente temas para sound bites, memes e tuítes. Trata-se de tentar explicar como chegamos à quadra em que nos encontramos – por falta de liderança esclarecida, empatia e capacidade de coordenação; como resultado do negacionismo ante as evidências e recomendações baseadas em ciência. Quadra em que quase meio milhão de brasileiros já se foi e milhões são tratados – não apenas pelo vírus da natureza, mas por ações e omissões de política pública – quase como a miríade de seres das metáforas que abrem este artigo.
Mães: Pensemos nas que perderam os seus, nas perdidas pelos seus e nas que lutam pelo futuro.
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