Folha (publicado em 13/06/2021)
O melhor momento que vivemos desde a redemocratização foi no governo Lula. No entanto, a hegemonia petista terminou na maior crise de nossa história.
Para construir um contrato social que sustente crescimento persistente a longo prazo, vale rever a análise que Celso Furtado fez da política econômica dos anos 1970, que anteciparam nossa primeira década perdida.
No livro de 1981 “O Brasil Pós-‘Milagre'”, nosso economista mais influente de todos os tempos escreveu:
“Também era necessário que se ampliasse a capacidade de financiamento a partir da poupança interna. Essa modificação estrutural somente seria obtida se, ao crescer o produto, durante algum tempo os gastos de consumo (privados e públicos) aumentassem menos que proporcionalmente”. Duas décadas depois, foi o que fez Lula nos primeiros anos de seu governo.
A partir da mudança na política econômica de Lula, em seguida à saída de Antonio Palocci do Ministério da Fazenda e o abandono da política de contenção fiscal, contudo, deixamos de seguir o ensinamento de Furtado.
No período de 2006 até 2014, o PIB cresceu em média 3,1% ao ano, e o consumo, 4,3%, 1,2 ponto percentual acima. Não surpreendentemente, as exportações líquidas, que eram superavitárias em 4,3% do PIB em 2005, tornaram-se deficitárias em 3,6%, uma virada de 7,9 pontos percentuais do PIB.
O segundo motivo que gerou a crise foi a perda de eficiência do investimento. Investimentos foram feitos. Maturaram mal. O crescimento máximo possível, o que os economistas chamam de crescimento potencial, reduziu-se.
Algo semelhante havia se passado nos anos finais da ditadura, segundo a crítica de Furtado em 1981. O economista notou que a descoordenação na década de 1970 das decisões de investimento, numa economia em que o mercado não exercia poder de direcioná-las, acabou por gerar perda de eficiência.
Apesar de o governo militar ser à primeira vista altamente centralizado, havia dentro dele uma “fragmentação do sistema de decisões, forma de feudalismo, ou senhorio, que opera sem unidade de propósito”, escreveu em artigo no Jornal de Tarde em agosto de 1982.
Cada estatal ou ministério de certa forma agia independentemente do todo, fazendo os seus projetos, e gastos, com assustadora independência, sem precisar prestar contas ao Legislativo e à sociedade.
No livro “A Nova Dependência”, de 1982, anotou: “A partir de certo momento, qualquer tentativa visando a compatibilizar o agregado de projetos com os meios realmente disponíveis exige o abandono de obras e implica elevar os custos. A relação produto-capital corresponde à metade da que o país conheceu historicamente”.
Não que não tenha havido motivos externos para as nossas décadas perdidas. Tanto na década de 1980 quanto na de 2010, parte da queda de crescimento foi consequência de choques externos. Na primeira com muito mais intensidade do que na segunda.
Furtado acreditava no poder da democracia para gerenciar o Orçamento público, ou, em última instância, nosso conflito distributivo. No mesmo artigo no Jornal da Tarde, escreveu:
“Nas democracias modernas o controle dos gastos do Estado é obtido mediante um consenso entre as forças que estão na base do sistema de poder político. (…) A mediação da classe política é fundamental nesse processo”.
O presidencialismo brasileiro depende muito da qualidade da liderança da Presidência da República. O Congresso tem sempre a última palavra, mas, se o presidente se exime de suas responsabilidades e não lidera na explicitação e na mediação dos conflitos, o impasse está estabelecido.
Ano próximo temos mais uma oportunidade de acertar.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2021/06/celso-furtado-e-decadas-perdidas.shtml
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