Artigos

Estranha crise econômica

Folha (publicado em 27/06/2021)

recuperação das economias tem surpreendido a todos. Penso que continuará a surpreender nos próximos trimestres.

O motivo é que a crise econômica produzida pela pandemia tem natureza totalmente distinta de uma crise que resulta do próprio funcionamento da economia.

Na grande crise financeira global que estourou em setembro de 2008, em seguida à falência do banco Lehman Brothers, a recuperação foi muito lenta.

Ao longo de mais de uma década, a má regulação permitiu, sem maiores cuidados, a concessão de hipotecas para a baixa renda americana com elevado risco. Quando o ciclo da economia se reverteu, a inadimplência no setor bancário americano e europeu, que também tinha entrado na festa, foi imensa.

Uma crise desse tipo deixa marcas permanentes no sistema econômico. Há perda permanente de produto, fruto da má alocação do investimento que vigora ao longo dos anos e do excesso de endividamento. Quando o crescimento retorna, isso ocorre a uma taxa mais baixa. A taxa de crescimento
anterior à crise estava anabolizada pela má regulação.

Analogamente, se olharmos a grande crise brasileira de 2014-2016, houve clara perda permanente de produto. A má alocação de capital no ciclo de investimento sob a liderança do setor público, ao longo dos nove anos entre 2006 e 2014, explica a perda permanente.

A crise política e a dificuldade de construção de consensos para superar a fragilidade fiscal, que está conosco até hoje, têm dificultado muito a retomada do crescimento.

Com as perdas da atual crise, será diferente. O fator exógeno que a produziu, o vírus, será vencido pela vacina. Já há um processo de adaptação dos setores econômicos ao vírus: a redução de mobilidade freia menos a atividade econômica do que antes da pandemia.

Esse fato ficou claro após a divulgação, pelo IBGE, da atividade no primeiro trimestre: a economia, após três trimestres de recuperação em “V”, retornou ao mesmo ponto em que estava no quarto trimestre de 2019.

A recuperação tem sido muito heterogênea. Alguns setores rodam acima dos níveis anteriores à pandemia, como agropecuária, serviços financeiros e imobiliários e indústria de transformação, enquanto o segmento de “outros serviços” marca passo.

“Outros serviços”, que representa 15% do PIB e pouco mais de 30% do emprego, ainda está 10% abaixo do nível anterior à epidemia.

O item “outros serviços” compreende turismo, bares e restaurantes, toda a parte de entretenimento e serviços pessoais. A crise social somente cederá se houver a normalização de outros serviços, que, por sua vez, requer o avanço na campanha de vacinação.

Minha aposta é que haverá nos próximos trimestres a normalização de outros serviços. E ocorrerá uma passagem de bastão da indústria de transformação, que deve reduzir sua atividade em algum momento em 2022, para outros serviços.

Assim, há ainda muito espaço para a recuperação da economia. O crescimento de 5% a 5,5% em 2021 será sucedido por expansão na casa de 3% a 3,5% em 2022. Em algum momento de 2023 estaremos na mesma tendência que vigorava antes de o vírus aportar por aqui. Aí teremos de nos haver novamente com a nossa mediocridade.

***

Acaba de ser publicado pela Zahar o livro “Como Remover um Presidente”, de Rafael Mafei. Edição muito cuidada —belo índice remissivo, notas e referências bibliográficas muito bem documentadas—, o livro elabora as experiências e a legislação de impedimento de um presidente no Brasil desde a República Velha até um possível impedimento de Jair Bolsonaro, passando pelo polêmico processo de Dilma Rousseff. Recomendo.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2021/06/estranha-crise-economica.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.



Sobre o autor

Samuel Pessôa