Estadão (publicado em 02/07/2021)
Onde há gasto público, ou transitam recursos ligados ao patrimônio público, há oportunidade de corrupção, definida como o abuso do poder público em benefício privado. Com a pandemia o gasto público no mundo cresceu de maneira extraordinária. Aumentaram os gastos com a saúde, para ampliar o número de leitos, comprar equipamentos, medicamentos, vacinas, contratar pessoas, etc. Também as pessoas e os setores mais afetados receberam auxílio, seja através de transferência direta, no caso dos mais pobres e dos desempregados, como de redução ou postergação de impostos e criação de linhas especiais de crédito, no caso das empresas.
Segundo o Fiscal Monitor, do FMI, desde janeiro de 2020 os 10 países desenvolvidos do G-20 gastaram, em média, 11,7% do PIB com a pandemia, com os Estados Unidos na liderança (25,5% do PIB). Já os 10 países emergentes do G-20 gastaram, em média, 4,0% do PIB, sob a liderança do Brasil, que gastou mais do que o dobro da média (8,8% do PIB). Não foi por falta de dinheiro que a pandemia ficou descontrolada por aqui.
Tantos recursos a serem gastos em condições e circunstâncias tão incomuns são uma prova de fogo para testar o grau de integridade – ou de corrupção – de cada país. À propósito, o FMI tem insistido na necessidade de reforço na governança pública, através de maior transparência nas despesas, tendo exigido medidas específicas dos países que receberam financiamento da organização durante a crise. Dentre elas estão o compromisso de divulgar os contratos públicos relacionados à pandemia, com informação sobre os reais proprietários das empresas com as quais foram firmados tais contratos, bem como os relatórios de gastos com a Covid-19 e os resultados das auditorias sugeridas. Quanto maior a presença de corrupção no país, mais rígidos são os controles impostos.
Felizmente, não foi preciso recorrer ao FMI para financiar os nossos gastos com a crise, mas, sem uma vigilância externa, nossa notória fragilidade na identificação e combate à corrupção aumentou diante de tantas oportunidades de ganhos e da excepcionalidade do momento político. Um presidente, que tem pouco apreço à democracia, e que considera uma virtude interferir em órgãos de controle, acabou caindo no colo do Centrão para evitar um impeachment, cada vez mais provável diante do desastre da sua atuação na pandemia. Esse acordo indigesto abriu as portas para a prática de corrupção a céu aberto e para o afrouxamento das leis a ela relacionadas. Depois de se esconderem na penumbra durante anos, por temor às investigações da Lava Jato, Zelotes, e tantas mais, os redivivos reapareceram, com a fome e a desenvoltura dos intocáveis. Não contentes com os ganhos atuais, se empenham em ampliar seus privilégios durante as próximas décadas. É a busca da impunidade garantida pelas leis.
Para tanto, in fretta e furia, sem transparência ou participação da sociedade, se lançaram a redefinir crimes, penas, prescrições e leis que regem os partidos, em uma lista repulsiva de retrocessos institucionais. Há de tudo no cardápio, que vai do afrouxamento da lei de Improbidade Administrativa, passando pela redução do alcance da Ficha Limpa, chegando ao ápice com uma profunda reforma partidária. Nas propostas há flexibilização da cláusula de barreira, volta do financiamento empresarial de campanha, redução do alcance da Justiça Eleitoral, e até o infame “distritão”, um sistema que caiu em desuso no mundo há décadas pelos seus vícios. Enfraquece a representação da vontade popular e a importância dos partidos, pereniza caciques e suas proles na política, e favorece a eleição de celebridades, uma vez que só os mais votados são eleitos. Nada mais distante da reforma política necessária para a construção de um país mais íntegro e justo.
A atual avalanche de retrocessos institucionais precisa ser contida antes que a justiça e todos os órgãos de controle sejam neutralizados. Sabemos que o objetivo é um só: a defesa de interesses individuais e a manutenção do poder, colocando em risco o estado democrático de direito. Os desvios de recursos públicos, resultantes da prática da corrupção reduzem a qualidade e a eficiência das políticas públicas, com impactos negativos sobre o crescimento econômico e a justiça social. A pandemia se alonga, a vacinação é lenta e mais vidas são ceifadas. Agrava-se a desigualdade e o desemprego. O cidadão comum paga muito e recebe pouco, e a diferença vai para os bolsos dos que abusam de suas funções públicas. Esse é o resumo do curso intensivo de corrupção que estamos assistindo. Não por acaso, para 90% dos brasileiros a corrupção nos governos é considerada um grande problema, segundo o Global Corruption Barometer Latin America, da Transparência Internacional. A esperança é que a agenda de integridade seja abraçada pelas forças políticas comprometidas com a defesa da democracia e do bem comum.
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