Conjuntura Econômica (publicado em 07/07/2021)
Entrevista com Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito SP.
O senhor considera que os questionamentos gerados pelo episódio das denúncias de irregularidades na compra da vacina Covaxin envolvendo Luis Ricardo Miranda – em que se argumenta a importância da garantia de estabilidade ao servidor público para seu posicionamento na CPI – podem colaborar no debate da reforma administrativa?
Acho que sim, não pelas qualidades do episódio, mas para chamar a atenção de que se trata de um debate mal colocado na sociedade brasileira. Parte da sociedade acha que a estabilidade é a razão do mal funcionamento do serviço público; outra parte acha que estabilidade é condição indispensável para que a administração pública não seja patrimonialista. Essa é uma discussão feita na base do radicalismo que não corresponde à verdade. A estabilidade não existe, por exemplo, para funcionários do BNDES e do Banco do Brasil que são celetistas de empresas estatais. E ninguém pode afirmar, depois de tantos anos de existência dessas instituições, que esses funcionários são os maiores agentes do patrimonialismo brasileiro por não terem estabilidade. Pois a proteção contra a independência do funcionário vem de um conjunto de fatores, e não apenas da estabilidade individual.
Também não é certo que a existência da estabilidade seja causa do mal funcionamento da administração pública isoladamente, e que sem acabar com a estabilidade para todos não vamos corrigir os defeitos do serviço público. Para corrigir defeitos que existem, por exemplo, quanto à produtividade no setor público, não é preciso acabar com a estabilidade de quem hoje a tem. Basta que estabeleçamos mecanismos de gestão de desempenho, que hoje são frágeis. Um dos mecanismos de gestão de desempenho importante é recompensar quem tem melhor desempenho e não dar recompensas automáticas a agentes públicos só pelo tempo de serviço, por exemplo. Isso é mecanismo de gestão de desempenho, e é possível usá-lo em relação a servidores estatutários e estáveis.
Então, o que importa para melhorar o serviço público não é acabar com a estabilidade, mas gerir o desempenho. Hoje a Constituição permite, inclusive, que os servidores estáveis que tenham mal desempenho continuado percam a estabilidade. Além disso, permite que servidores estáveis que cometam infrações – dentro do que a lei define como infração – sejam demitidos. Então, existe uma visão falsa sobre o regime constitucional da estabilidade. Não precisamos fazer uma mudança no regime constitucional da estabilidade para melhorar a gestão de desempenho. E, também, não é verdade que todos os agentes públicos do Brasil precisam ter estabilidade sob pena de a nossa administração afundar no regime patrimonialista.
O deputado Arthur Maia (DEM-BA), relator da reforma, tem argumentado que a quebra da estabilidade não será para todos os funcionários, e deverá acontecer depois de uma avaliação ampla feita por vários atores, o que garantiria proteção contra demissões por motivos políticos. Em que essas regras se diferem do que a Constituição já estabelece, mas ainda não foi regulamentado?
Como lhe contei, a Constituição já estabelece para servidores efetivos e estáveis a possibilidade de serem inclusive dispensados por insuficiência de desempenho. Não sei o que o relator está pensando em mudar em relação a isso, mas me parece que não é preciso mudar nada para regulamentar esse dispositivo que já está na Constituição. Portanto, uma reforma constitucional não ajuda em nada. O que é preciso fazer é aprovar a lei complementar que permite a dispensa por insuficiência de desempenho.
Mas não é só dispensa que serve como instrumento de gestão de desempenho, nem é o principal. O principal instrumento é poder fazer avaliações de desempenho, e com base nelas promover ou não servidores, dar ou não vantagens remuneratórias. Organizar o regime dos servidores, de modo que se faça a gestão adequada de seu desempenho, cabe à lei de cada carreira, nem precisa ser lei complementar. Também é preciso lembrar que, além dos servidores das estatais que são celetistas não terem estabilidade, hoje temos servidores temporários que não têm estabilidade. E ninguém está pensando em mudar isso. Então, não sei exatamente a mudança que o relator propõe, mas o que é preciso destacar é que para mudar radicalmente os incentivos de produtividade da administração pública não é preciso acabar com a estabilidade de quem já tem. O que é necessário é regulamentar instrumentos de gestão de desempenho, e para isso, não precisamos de reforma constitucional, mas de reformas legais, e é nessas que temos que focar.
Outro tema que tem sido questionado é a proposta de se eliminar a necessidade de que cargos de confiança sejam ocupados por funcionários públicos, sob a justificativa de que poderia ampliar o apadrinhamento político. Estamos efetivamente sob risco de piorar a qualidade da administração pública?
Veja, é importante situar os tipos de vínculo que hoje a Constituição prevê para o trabalho no serviço público, e que são quatro: cargo efetivo, cargo em comissão, a função de confiança e a contratação por tempo determinado. O cargo efetivo é aquele pelo qual se obtém estabilidade e que demanda passar em concurso público. O governo não propõe grande mudança em relação a isso. Na PEC do governo, cargos efetivos continuarão a existir, só que ficarão reservados apenas ao que eles chamaram de carreiras típicas de Estado, que não sabemos o que são, a ser definidas depois por lei. Ou seja, a mera mudança da Constituição, tal como o governo propõe, não tem impacto direto, porque tudo dependerá do que a lei definirá depois. Se todas as carreiras que hoje dão direito a estabilidade forem definidas como carreiras típicas de Estado, a questão da estabilidade permanecerá a mesma.
O segundo tipo de vínculo é o cargo em comissão, que pode ser provido por pessoas que não fazem parte do serviço público, ou seja, sem concurso. A decisão sobre quem vai ocupá-lo é discricionária da autoridade que tem poder de nomear. Hoje a Constituição diz que esses cargos devem ser preenchidos em condições e percentuais mínimos previstos em lei – municipal, estadual ou federal –, e se destinam apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. Eles podem ser providos com pessoas que não são do serviço público, mas a lei pode prever que certos cargos em comissão são exclusivos de servidores de carreira. A mudança que a PEC propõe em relação a isso, em primeiro lugar, é de terminologia. Deixam de ser cargos em comissão e passam a ser de liderança e assessoramento. Até aí, sem grande mudança. Mas também há alterações quanto a atribuições: as de direção, chefia e assessoramento passam a ser substituídas por atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Mudam as palavras, e não se sabe exatamente como elas serão interpretadas pelos legisladores futuros, ou mesmo pelo Supremo. Há uma preocupação com a definição de “atribuições técnicas”, pois poderiam indicar que a Constituição estaria permitindo sua ocupação por pessoas sem concurso público, e isso seria mau. Não sei se é o caso. Se pensar o caso de universidades que contratam professores estrangeiros, convidados, para dar cursos que é exatamente a mesma função de um servidor permanente. O argumento contra essa mudança é muito apoiado na ideia de que, aprovada a PEC, os legisladores municipais, estaduais e federais cairão no patrimonialismo generalizado. Acho isso um delírio. O mundo não funciona assim, e não acontecerá assim.
A terceira categoria são as funções em confiança. A Constituição diz que as funções de confiança são exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo. E para que elas servem? Como uma maneira de a cúpula atribuir àqueles que eles consideram servidores mais adequados funções de direção, chefia ou assessoramento, e estes ganhem mais por isso. O maior número na administração federal hoje é de função de confiança, reservada a servidores efetivos, mas escolhidos discricionariamente para ocuparem esses postos. A PEC propõe que os cargos de liderança e assessoramento serão destinados a atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas, mas não se refere mais a que sejam exercidos exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo. Os críticos a essa mudança consideram que, aprovada a PEC, automaticamente as funções de confiança serão destinadas a pessoas de fora da administração e haverá um boom de patrimonialismo. Isso é falso. Quem cria função de confiança é a lei. Não existe percentual constitucional para essa função.
Pode ser que haja algum alargamento na criação de cargos em comissão, pela de atribuições – para atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Mas isso está sujeito à interpretação que os legisladores farão, e à própria jurisdição constitucional. Em suma: ainda que não seja favorável às mudanças que o governo propõe, pois não acho que agregam, considero que está se fazendo uma leitura errada sobre essa mudança. Criar funções de confiança continuará a ser atribuição do legislador, e as funções de confiança poderão continuar a ser atribuídas a servidores ocupantes de cargo efetivo. Essa proposta não tem a relevância nem que o governo supõe, nem a que os críticos estão supondo. É um debate vazio.
A quarta situação, é a contratação por tempo determinado. Sobre ela, a Constituição diz que a lei estabelecerá os casos de contratação sob esse critério, e o governo não propôs mudança. E essas contratações hoje já são feitas largamente, em especial no âmbito dos estados e municípios para atender o crescimento da demanda por serviços sociais, educação e saúde.
Portanto, a proposta do governo não tem efeitos imediatos, e no final das contas o que molda os tipos de vínculo que funcionam, na prática administrativa, são as leis. Claro que a Constituição tem uma função limitadora, mas é falso que os 80 mil casos de função de confiança hoje ocupados por servidores efetivos, com a mera aprovação da PEC, serão todos transformados em cargos em comissão.
A reforma administrativa está na pauta do Congresso em um momento politicamente difícil para o Executivo. Levando em conta que na discussão de temas como esse não há vácuo de poder, considera que a atual conjuntura política pode comprometer o resultado da reforma, caso esta seja aprovada?
A reforma administrativa é comprometida não só pelo vácuo de poder, mas pela qualidade insuficiente da proposta. O governo se propôs a fazer mudanças constitucionais muito complexas, difíceis de entender, porque elas estão mal direcionadas. Por ser uma proposta inadequada, é difícil controlar os resultados que possam sair do debate no Congresso. Essa é a primeira razão. O fato de o governo se tornar frágil e haver um debate sobre as reformas pode trazer um feito contraproducente do ponto de vista corporativo, de não se fazer nenhuma reforma boa, mas reformas em favor de interesses. Porque as corporações têm muita facilidade em reivindicar no Congresso, e podem ampliar benefícios.
Agora, o fato de o governo estar frágil para defender seu texto de proposta constitucional não é exatamente um problema. O que o governo deveria fazer é apoiar projetos de lei que estão na pauta do Congresso e que não tem apoiado, como o projeto para regulamentar os ditos supersalários, para acabar com certas brechas que têm permitido que se ultrapasse o teto de remuneração. E apoiar a discussão sobre a regulamentação da dispensa por insuficiência de desempenho. Além disso, o governo deveria propor, por meio de lei, a extinção das promoções por antiguidade e das vantagens remuneratórias que sejam atribuídas independentemente de uma avaliação comparativa de desempenho. Esses são exemplos de coisas positivas, mas que o governo não fez.
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