Veja (publicado em 09/07/2021)
O economista Angus Deaton, 75 anos, conquistou o Prêmio Nobel de Economia em 2015 por seus estudos sobre consumo, pobreza e bem-estar. Nascido em Edimburgo, na Escócia, ele se tornou uma das principais vozes no debate envolvendo todos os aspectos do desenvolvimento econômico, com uma visão ampla sobre qualidade de vida, saúde, mobilidade social, igualdade e crescimento econômico. Professor da Universidade Princeton desde 1983, ocupa a cátedra Dwight D. Eisenhower de Relações Internacionais e é professor de economia e assuntos internacionais na Escola Woodrow Wilson. A entrevista publicada a seguir foi concedida ao economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, cofundador e presidente do Conselho de Administração do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), organização que tem o objetivo de delinear, testar, propor, divulgar e acompanhar a execução de políticas públicas de impacto em mobilidade social. Fraga conheceu Deaton em 1983, quando fazia seu doutorado em Princeton. Posteriormente, os dois se reencontraram no Banco Mundial, onde atuaram no grupo de conselheiros do economista-chefe e vice-presidente sênior Nicholas Stern entre 2000 e 2003. Confira os principais trechos da conversa entre os dois economistas.
No Brasil, conhecemos de perto o drama da desigualdade e de sua persistência no tempo, que se traduz na falta de mobilidade social. Como você vê essa relação? Eu sou um exemplo de mobilidade social e me beneficiei da existência de meritocracia. Há economistas, por exemplo, que se dedicam a estudar desigualdade e derivam daí a baixa mobilidade. Mas minha opinião é que lidar com desigualdade e mobilidade social é caminhar na mesma direção. Não há conflitos de escolha, trade-offs, entre eles. Tendemos a pensar em mobilidade social e desigualdade como coisas ligeiramente diferentes, mas é óbvio que elas estão intimamente ligadas. Meu colega Alan Krueger (1960-2019), que foi professor em Princeton e conselheiro do presidente Barack Obama, desenvolveu a famosa Curva de Gatsby que mostrava que, em países onde há muita desigualdade, tende a haver muito pouca mobilidade social entre pais e filhos, por exemplo. Mas o contrário também é verdadeiro. Ou seja, se você tem baixa mobilidade social, isso vai fazer com que haja uma desigualdade de renda muito alta.
O problema da desigualdade está crescendo no Brasil. O Bolsa Família, um ótimo programa, só nos leva até certo limite, pois faz a maioria das pessoas simplesmente ultrapassar a linha da pobreza, o que não é suficiente para que haja de fato mobilidade social. O que temos de fazer para ir mais longe? São necessários outros instrumentos, como por exemplo o seguro-desemprego, que é uma maneira importante de evitar que um revés temporário se torne permanente. Outra ferramenta essencial é a cobertura de saúde, que nos Estados Unidos é um desastre. Ela é fundamental pois pode evitar que as pessoas percam seus rendimentos quando ficam doentes. Ou que percam a saúde quando estiverem sem renda. Essas são partes muito importantes da rede de segurança social, que vão além de programas como o Bolsa Família.
Temos no Brasil uma boa rede de proteção social, mas o problema é que lidamos com um setor informal muito grande. Com a pandemia, começou-se a pensar em apoio mais permanente do Estado. A discussão que está surgindo é sobre se devemos buscar alguma forma de renda básica universal em vez de programas mais direcionados. Ou se devemos recorrer a ambos. Qual a sua visão sobre esse assunto? Não sou realmente um fã de renda básica universal, embora seja a favor de redes de proteção social. Mas a renda básica universal é algo bem distinto disso. Ela ganhou força porque tanto a direita quanto a esquerda adoram. O que, aliás, me faz pensar que deve haver algo errado nisso. Mas, na verdade, o que está errado é que, nos Estados Unidos, esses grupos têm visões muito diferentes do que seja de fato um programa de renda básica universal. As pessoas da direita querem adotá-la, mas desde que se acabe com o resto da rede de segurança. Isso empobreceria muitas pessoas, além de deixar desassistidos os que estão precisando de ajuda urgente. Do outro lado, a esquerda quer ir além, criar um benefício universal e ampliar a rede de segurança atual, o que é extraordinariamente caro. Embora os dois lados defendam a renda básica universal, no fundo eles estão falando sobre coisas muito diferentes.
O que torna o capitalismo incapaz de resolver os problemas sociais que ainda existem mesmo em sociedades tão avançadas como as dos países ricos? No trabalho que fiz com minha esposa, Anne Case, batizado de Deaths of Despair and the Future of Capitalism, em que analisamos o impacto das imperfeições do capitalismo sobre o aumento do número de mortes decorrentes de alcoolismo, overdose e suicídio, identificamos que a verdadeira angústia que está afetando a classe trabalhadora americana, por exemplo, é a perda do emprego. Os radicais do Vale do Silício acreditam que todos os empregos vão acabar, e eu posso até concordar que um dia estaremos apenas dividindo o dinheiro que os robôs estarão produzindo, mas esse não é o mundo em que vivemos hoje. Mais produtivo seria pensar sobre como podemos ajudar a incentivar a criação de empregos para todos — e não apenas para pessoas com alto nível de educação. Isso requer pensar sobre que tipo de automação queremos encorajar e o que não queremos. O que ocorre é que colocamos em um pedestal as pessoas que vão para a faculdade. E dessa forma criamos uma sociedade dividida. Um terço das pessoas pertence à elite educada e os outros dois terços se tornaram uma espécie de classe ignorada, sem influência política, sem perspectivas, com escolas ruins para seus filhos, e daí por diante. Na verdade, precisamos de empregos. Especialmente no caso do Brasil, ou de países como o Brasil, temos de encontrar uma variedade de empregos que preservem o respeito e a autoestima, ainda que não levem necessariamente as pessoas a se tornarem matemáticos, economistas ou programadores de TI. Há uma grande variedade de empregos intermediários, que costumavam ser bons e deveriam continuar sendo. Acho que o problema é que estamos acelerando o fim desses empregos. Nos Estados Unidos existe um enorme incentivo fiscal para que os empregadores instalem robôs nas empresas, o que é uma loucura. É necessário que se adote um mecanismo que requalifique as pessoas ao longo do caminho, para que elas não fiquem sem trabalho daqui a vinte anos. Você tem de gastar muito dinheiro com isso. Mas vale a pena.
Pensando no que ocorre no Brasil, preocupa-me o fato de sermos presas fáceis do populismo. Isso reforça a importância de buscarmos reduzir a desigualdade e ampliar as possibilidades de mobilidade. Parece que estamos presos em uma espécie de pesadelo populista por aqui. A ameaça da tecnologia, como você disse, para nós é realmente assustadora. E algumas pessoas simplesmente não sabem exatamente o que isso significa, mas sabem que seu emprego está em risco. Existem muitas formas diferentes de desigualdade em curso. Você acabou de mencionar a desigualdade educacional. O simples fato de haver um grupo de pessoas muito bem-educadas e outro com baixa escolarização já é uma forma de desigualdade, e não importa quais sejam as consequências disso. Mas há ainda a desigualdade de representação política, que é extremamente importante também. Nós costumávamos nos preocupar com vocês, brasileiros, sendo reféns do populismo e agora nós nos tornamos igualmente reféns do populismo, assim como aconteceu com muitos países europeus. Nos países ricos, os partidos de esquerda, que tinham suas bases nos sindicatos ou nos trabalhadores, se tornaram intelectualizados e se juntaram à elite educada. E a direita continuou representando o dinheiro que rende juros. Então não sobrou nada para o povo que costumava ser representado pelos partidos de esquerda. Nos Estados Unidos, isso foi feito mais ou menos deliberadamente pelo governo no início dos anos 1970, e o Partido Democrata se tornou um partido de elite educada e de minorias, e deixou todas as pessoas brancas menos educadas de fora e com pouquíssima voz política. É extremamente importante atentarmos a esse tipo de desigualdade de participação política na sociedade.
Uma questão muito interessante em seu trabalho é não apenas olhar para a falta de igualdade ou de mobilidade, mas manter o foco em buscar a origem da desigualdade. Pode nos falar sobre sua visão a respeito da origem da desigualdade? Gosto de comparar as pessoas ricas da América com as da Europa. Aqui existem pessoas como o criador da Amazon, Jeff Bezos, o da Microsoft, Bill Gates, todos os nomes do Google, Mark Zuckerberg, e assim por diante. Todos eles fizeram alguma coisa. Já na Europa, há figuras como oligarcas russos e pessoas desse tipo. Então, há uma espécie de distinção entre o que você pode chamar de “fazedores” de um lado e “tomadores” de outro. Se a desigualdade surge porque as pessoas inventam coisas que ajudam a todos nós, e Bezos seria o exemplo mais óbvio, as pessoas se ressentem muito menos, pois o que ocorre nesses casos é basicamente um alinhamento de benefícios sociais com benefícios privados. Mas elas ficam muito infelizes se a desigualdade vem por práticas desleais ou corrupção, ou de lobbies no Congresso para conseguir privilégios, como uma licença exclusiva para fazer algo que torna determinados grupos muito, muito ricos. As pessoas ficam muito infelizes nesses casos. Anne e eu temos olhado, por exemplo, os dados de mortalidade por Covid e vimos que, para se proteger da doença, um diploma universitário é quase tão bom quanto a vacina. Na pandemia, o mercado de ações atingiu níveis incríveis e nossos portfólios estão subindo vertiginosamente. Estamos sentados em casa, trabalhando com segurança no zoom. Já as pessoas sem diploma universitário e baixa escolaridade que estão lá fora, trabalhando nas lojas ou nas fábricas de alimento, estão morrendo. Então, é como se metade da população estivesse morrendo enquanto a outra metade está enriquecendo. Você começa a pensar que talvez a desigualdade por si só seja o problema, não importa se as fortunas venham de origens conhecidas.
Uma outra questão, que tem a ver com organizações como o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, que está trabalhando com políticas públicas baseadas em evidências, é que se tem dado muita ênfase a experimentos de controle randomizados, ou seja, que usam grupos de controle para avaliar as políticas e assim por diante. Lembro-me bem de quando trabalhávamos no Banco Mundial e você fez uma observação que eu, então no governo brasileiro, achei que era a chave de tudo. Você dizia que tudo que fazemos deve ser avaliado permanentemente. Isso foi há vinte anos. E hoje, estamos indo longe demais na obsessão por esses experimentos? Eu não desisti da política baseada em evidências. Mas a questão é verificar se os experimentos de controle randomizados estão de alguma forma sendo supervalorizados. Se são de fato a única forma de fazer as coisas. Tem-se opiniões extremas. Pessoas que dizem que, se não teve um experimento de controle randomizado, não deveríamos sequer prestar atenção no assunto, o que é obviamente um absurdo. Cito um exemplo: nós todos acreditamos no efeito positivo da educação sem que tenhamos precisado de estudos randômicos para isso. Tomamos aspirinas quando sentimos uma dor de cabeça, o que também nunca teve um experimento de controle randomizado. Tais experimentos são bons em alguns casos, mas você sempre tem de prestar atenção. Entender o que vai acontecer quando uma coisa que funcionou durante algum tempo sob determinadas circunstâncias para um grupo de controle for aplicada na totalidade. É preciso integrar os achados à economia ao longo do caminho. É óbvio que acho uma boa ideia que as vacinas que recebi no braço tenham sido testadas em um experimento. Mas provavelmente poderiam ter sido projetadas sem randomização. Há uma “santidade” atribuída à randomização. Uma obsessão quase religiosa. É uma coisa que devemos usar quando for útil, mas não é o Santo Graal.
Gostaria de abordar agora a questão da meritocracia versus oportunidade e desesperança no contexto brasileiro. Uma coisa que estamos sempre procurando, quando pensamos em tecnologia e oportunidades, é o potencial para pular etapas, para não repetir o erro de outros países ou outras pessoas. No caso do Brasil, onde estamos bem abaixo na curva de aprendizado, é possível pular etapas com o uso da tecnologia? Quando falamos sobre os tipos de emprego e o uso de tecnologia, há, sim, a possibilidade de pular etapas. Você precisa de mais oportunidades para que crianças talentosas em todo o Brasil entrem nas escolas e descubram suas habilidades. A meritocracia em seus primeiros estágios é ótima, porque você pode ter pessoas talentosas fazendo trabalhos importantes. Por outro lado, você deve ter cuidado com o segundo estágio, quando a primeira geração de meritocratas pode recolher as pontes depois que passam, para bloquear a passagem da segunda geração — e com isso se torna uma aristocracia. É preciso alcançar uma situação em que esse grupo ajude a próxima geração. Quando era criança, passei muito tempo em uma cidade pequena da Escócia. Era um lugar com pessoas talentosas e que, apesar de não terem uma educação formal, realmente enriqueceram a vida da cidade. Mas a geração seguinte optou por morar em Londres ou em qualquer outro lugar e a cidade, hoje, está desprovida daquele tipo de talento. Eu me considero uma pessoa que se beneficiou enormemente da meritocracia e da mobilidade social. Uma das coisas que me preocupam é que as mesmas oportunidades podem não estar lá para as crianças inteligentes que são sessenta anos mais novas do que eu, e que ainda estão procurando seu caminho no mundo.
Link da publicação: https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/arminio-fraga-entrevista-angus-deaton-nobel-de-economia-em-2015/
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