Folha (publicado em 18/07/2021)
Em minha última coluna, servi-me do recente exemplo peruano para apontar os riscos de radicalização que uma fragmentação do centro pode conter.
Alguns leitores, sem discordar necessariamente da tese, observaram que, no Brasil de hoje, não se podem considerar equivalentes as eventuais ameaças à democracia apresentadas pelas duas candidaturas que lideram as pesquisas.
Concordo com eles. Acredito que o aparelhamento da máquina pública, a tentativa de aliciamento do Legislativo através do mensalão e o projeto de controle da mídia, iniciativas dos governos petistas que dificilmente se enquadrariam como “republicanas”, empalidecem diante da sucessão de investidas contra a institucionalidade a que assistimos no atual governo.
O seu inequívoco caráter autoritário lhes confere uma natureza, e não apenas um grau, diversa e muito mais grave do que aquela vivida durante a gestão da esquerda. Os ataques presentes são tão frequentes, intensos e variados que ameaçam anestesiar nossa sensibilidade e embotar nossa capacidade de indignação.
Parêntese: um excelente professor de literatura no colegial, Flávio Di Giorgi, nos dizia que a capacidade de se indignar é um dos atributos mais distintivos do caráter humano, antes de proceder à leitura em voz alta de “Fala aos Pusilânimes” do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.
Seria ingênuo e temerário ignorar a existência de método e propósito, por trás da aparente espontaneidade primitiva dos ataques presentes.
Enquanto as águas são testadas por diatribes insensatas proferidas diante de pequenos grupos de correligionários fanáticos, urdem-se no Legislativo tramas com consequências mais graves e duradouras.
As manifestações públicas têm sido adequadamente contestadas pelos Poderes independentes, que dispõem dos meios legais para contê-las, inclusive a possibilidade crescente do impeachment.
Devemos estar atentos para que este embate mais evidente não sirva como estratégia diversionista para viabilizar a consagração de dispositivos autoritários em nossas leis.
Tomo como exemplo apenas uma das iniciativas, que se encontra em plena evolução nestes dias: a tentativa sub-reptícia de cooptação das forças policiais através da concessão de benefícios especiais a seus membros, como a criação de linhas de crédito imobiliário privilegiadas.
Parece algo pequeno, mas é um recurso que se enquadra claramente no receituário de submissão do aparato repressivo do Estado a um grupo específico. Não é algo inovador. Trata-se de uma estratégia adotada com frequência na construção do totalitarismo.
Há uma excelente série de televisão, “Babylon Berlin” (1) que dá uma boa ideia desse processo durante a República de Weimar no final dos anos 1920, quando se criavam as condições políticas e sociais que permitiriam a ascensão dos nazistas ao poder.
Além de um retrato cuidadoso do ambiente político, a série traz uma admirável reconstrução de época, com atenção ao vestuário, arquitetura, música e zeitgeist daqueles anos tumultuados.
O fato de que os extremos do nosso espectro eleitoral (que, como inferido acima, não correspondem aos extremos do espectro ideológico) não possam e não devam ser vistos como igualmente ameaçadores à ordem democrática não diminui a importância da busca por uma “terceira via”.
Trata-se de oferecer uma alternativa viável à significativa parcela dos eleitores que não se identificam nem à direita nem à esquerda. Esta iniciativa, contudo, encontrará forte resistência por parte das candidaturas hoje majoritárias. A charge de André Dahmer, ao lado, publicada na Folha, ilustra este comportamento.
Apesar de todas as diferenças, há algo que inegavelmente une os polos: o desejo de se enfrentarem no segundo turno. Ambos os lados avaliam que sua maior chance de êxito eleitoral reside na disputa com seu extremo oposto.
Assim, em um aparente paradoxo, tanto a esquerda quanto a direita procurarão atacar qualquer candidato de centro que comece a ascender nas pesquisas, ainda que ao custo de temporariamente fortalecer aquele que veem como adversário último.
Reforça-se assim a necessidade de entendimento entre os candidatos e partidos mais próximos ao centro.
Por resultar de um compromisso entre diversas tendências, a plataforma eleitoral unificada deverá concentrar-se em poucos pontos fundamentais. Para facilitar a adesão, é imprescindível que o candidato declare que, se vitorioso, não concorrerá à reeleição.
A política econômica deve ser voltada para o crescimento e redução de desemprego, combinada com a manutenção de baixas taxas de inflação (com as suas implicações em termos de política monetária e fiscal), aliada a um programa consistente de transferência de renda.
Como metas estratégicas, o meio ambiente e a educação seriam promovidos ao nível de “Questão de Estado”, visando o estabelecimento de procedimentos e metas plurianuais claras —como o Pisa, no caso da educação, e os índices de desmatamento e emissão de carbono para o meio ambiente— a exemplo do que, desde o Plano Real, o país foi capaz de fazer em relação ao controle da inflação.
Cabe a nós, eleitores “de centro”, exigirmos dos nossos representantes o empenho na promoção de um entendimento, que ofereça ao país uma alternativa real às tendências que hoje lideram as pesquisas.
(1) Globoplay. Curiosidade: há, na terceira temporada, uma cena no tradicional “Romanisches Café”, ponto de encontro de escritores e jornalistas em Berlim nos anos 1920, em que o personagem folheia demoradamente um exemplar da “Folha da Manhã”.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2021/07/diferencas-entre-extremos-do-espectro-eleitoral-nao-diminuem-importancia-da-terceira-via.shtml
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