Valor (publicado em 09/08/2021)
As tratativas do manifesto dos empresários, divulgado no dia 4, precederam o acirramento do conflito institucional mas acabaram por influenciá-lo no sentido de isolar o presidente da República no ataque às urnas eletrônicas. A decisão do presidente do Supremo, Luiz Fux, de cancelar reunião entre os Poderes foi nesta direção, bem como a manifestação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que defendeu, em entrevista à GloboNews na manhã de sexta-feira, a legitimidade do sistema de votação e criticou o voto impresso. Falta a Câmara.
A decisão do presidente da Casa de levar a proposta de emenda constitucional do voto impresso ao plenário inquietou organizadores do manifesto, como Fabio Barbosa, sócio da Gávea Investimentos e integrante do Centro de Debate de Políticas Públicas.
Foi no CDPP que nasceu o manifesto “Eleições serão respeitadas”. Das conversas entre Barbosa, Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central, e Carlos Ari Sundfeld, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, amadureceu o texto que veio a público na quinta, 6, e saltou das 268 signatários iniciais para quase 25 mil no domingo, entre eles Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú Unibanco), cujo apoio surpreendeu muitos de seus pares no mercado financeiro, e Alexandre Bertoldi, CEO do Pinheiro Neto, escritório de advocacia de algumas das maiores multinacionais instaladas no país.
As lideranças empresariais, em sua grande maioria, estão insatisfeitas com o populismo fiscal do governo Jair Bolsonaro. Há uma convergência, porém, entre os organizadores do manifesto, de que este azedume não os influenciou. A adesão refletiria, de fato, a defesa da democracia como valor a ser preservado acima de quaisquer questões de governo.
“Enquanto discutíamos como amadurecer uma terceira via, nos demos conta de que a própria eleição estava ameaçada”, diz Fábio Barbosa. Calhou de o manifesto aparecer junto com a reação institucional, mas a coincidência indica que a sociedade está amadurecida para a defesa da democracia, conclui Barbosa.
A pressão não cessou. “Com tantos projetos estruturantes que precisam ser discutidos como a reforma administrativa e tributária, preocupa ver que a Câmara agora vai parar tudo por algumas semanas para discutir o projeto de voto eletrônico ou impresso, importante mas desnecessário. A incerteza que foi plantada quanto à confiabilidade do voto eletrônico já foi rejeitada na comissão e deveria ser página virada”, diz o sócio da Gávea Investimentos.
Parlamentares contrários à proposta de emenda constituição que muda o sistema de votação também apostam que o manifesto venha a impactar a decisão do plenário da Câmara dos Deputados. “O manifesto foi decisivo para o encaminhamento da discussão em defesa do sistema eleitoral”, disse o vice-presidente da Casa, deputado Marcelo Ramos (PL-AM). Para um ministro do Supremo Tribunal Federal, a manifestação sinalizou a percepção da sociedade, inclusive de setores que estiveram com Bolsonaro em 2018, do tipo de manobra que a ofensiva do presidente contra a justiça eleitoral engendra.
O manifesto não balançou o núcleo duro do bolsonarismo no meio empresarial, como Luciano Hang (Havan), Washington Cinel (Gocil) ou Flávio Rocha (Riachuelo). O que torna possível uma reprodução, em menor escala, do fenômeno observado nos Estados Unidos. A campanha de contestação à eleição do presidente americano, Joe Biden, com a produção sistemática de documentários e propaganda em redes sociais, sustentada até hoje por milionários, é capaz de manter cerca de metade dos eleitores republicanos na crença de que o resultado foi fraudado. Esta resiliência torna o manifesto “Eleições serão respeitadas” ainda mais estratégico.
Apesar de ter nascido no meio empresarial, o manifesto se espraiou por lideranças religiosas, como o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, e o rabino Michel Schlesinger, e sociais, como o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, e Adriana Barbosa, do empreendedorismo negro. A adesão não implica posicionamento em relação à disputa eleitoral de 2022. Um articulador da campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no meio empresarial, porém, vê benefícios por tabela. O manifesto teria um “efeito demonstração” sobre a classe média. Demonstraria que a elite dirigente do país e lideranças da sociedade associam Bolsonaro à afronta à democracia.
Ao levar adiante a votação da PEC do voto impresso no plenário da Câmara, a despeito do manifesto, dos tribunais e de Pacheco, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), arriscou não apenas sua interlocução com essas instâncias como a dos parlamentares. Se tivesse ido no rumo das demais manifestações e encerrado a questão, Lira teria contribuído para isolar Bolsonaro de um vez por todas no tema. Ao decidir levar a PEC ao plenário é ele quem arrisca se isolar.
A não ser que garanta, em plenário, a derrota da PEC, a exemplo do que aconteceu na comissão, que a derrotou por 23 votos a 11. A incerteza do resultado, porém, só ressalta os riscos que resolveu correr. Como o próprio Lira fez questão de lembrar na semana passada, a Câmara já aprovou o voto impresso mais de uma vez, sendo a proposta enterrada no Senado.
O presidente da Câmara havia prometido a três ministros do Supremo que não levaria a PEC ao plenário. A aprovação da proposta pode vir a custar um dos instrumentos que lhe conferem mais poder hoje na Câmara, a discricionariedade sobre a alocação e a execução de pelo menos R$ 11 bilhões em emendas de relator.
Corre na Corte alvo da ofensiva de Bolsonaro, que ganhou sobrevida com a decisão de Lira, uma ação que pede a suspensão das emendas de relator. A relatora do pedido de liminar é a ministra Rosa Weber. Na ação, o Cidadania questiona a falta de transparência nos critérios que definem a alocação de recursos para políticas públicas por meio das emendas. Reclama ainda da violação ao princípio da impessoalidade no favorecimento de aliados do governo na execução dessas emendas.
Com a decisão de levar a PEC ao plenário o presidente da Câmara não apenas arrisca o quinhão das emendas de relator e estica o conflito com os tribunais, como expõe os parlamentares a este conflito. O embate também acontece num momento em que Lira se encontra sob pressão para a liberação do quinhão de emendas sob seu controle. Aposta-se na Câmara que ele ainda pode ser pressionado a “gastar” um lote dessas emendas na votação em plenário.
A aprovação do voto impresso ainda indisporia os parlamentares com os presidentes dos partidos. Onze deles, entre os quais o PP de Lira, chegaram a formalizar um compromisso contra a medida. Marcelo Ramos reconhece que a decisão de levar a PEC ao plenário seja regimental mas espera que Lira o faça rapidamente para que a proposta seja derrotada.
Em seu pronunciamento, Lira disse que o conflito já foi “longe demais” e que todos na Casa que preside foram eleitos pela urna eletrônica. Resta agora a Lira garantir que a estratégia de levar a PEC a plenário de fato resulte numa rejeição respaldada pelo conjunto da Casa. Só este resultado demonstrará que o presidente da Câmara não embarcou no projeto bolsonarista de confrontar e desmontar as instituições de controle.
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