Folha (publicado em 22/08/2021)
“Eu sou eu e a minha circunstância…”
Ortega y Gasset
Eu era ainda jovem quando ouvi a famosa frase de Ortega y Gasset. Encantei-me de imediato com a sua concisão e as implicações da ideia que contém. Sem ter lido os textos do filósofo espanhol, nos quais se aprofundam os conceitos, baseio meus comentários apenas na compreensão que tenho do que a frase em si mesma transmite.
A partir do postulado de Gasset, por muitos anos refleti sobre os limites que nossa circunstância coloca sobre nossa liberdade de ser e pensar. A época em que nascemos, nossa pátria, nosso gênero, a classe social a que pertencemos, a educação que recebemos, nossa condição de saúde, constituem fatores sobre os quais não temos qualquer controle e que não podemos alterar, uma vez que muitos estão determinados já no nosso nascimento e outros ocorrerão independentemente da nossa vontade, com o passar do tempo.
Este vasto conjunto de elementos exercerá uma fortíssima influência sobre nossos atos e reflexões ao longo da vida. A crença de que todos os nossos pensamentos são espontâneos e decorrem do nosso livre pensar não se sustenta.
A consciência de sermos em grande medida condicionados pelos fatores específicos que nos cercam deve encorajar uma atitude de certa humildade em relação à correção de nossos juízos, de questionamento à imparcialidade de que muitas vezes nos acreditamos imbuídos e da propriedade de nos considerarmos com tanta frequência do lado do “bem” e ao lado dos “bons”.
Muitas vezes pensei na sorte que tive por nascer na circunstância em que nasci, por não ter nascido escravo em qualquer região, ou época ou —ideia ainda mais perturbadora— em uma família da elite alemã no início do século 20. Será que eu teria tido a força de caráter necessária para evitar ser nazista? Ou, se tivesse nascido à mesma época em que nasci, no Brasil, mas pobre e sem possibilidades de estudar, quem seria eu hoje? O que estaria pensando?
O conceito de que somos, se não totalmente condicionados, ao menos muito influenciados por nossa circunstância, também é útil em nossas relações. Considerar a circunstância de alguém de quem discordamos nos ajuda não apenas a compreender o pensamento divergente, mas também a estabelecer nossa linha de diálogo com essa pessoa. Ademais, o esforço de compreensão da condição do outro alarga nossos horizontes e enriquece nossa própria reflexão.
Há, por outro lado, algo de perigoso na ideia de sermos frutos de nossas circunstâncias, pois o conceito pode favorecer uma certa autoindulgência. É fácil sentir-me menos culpado por meus eventuais pensamentos e atitudes negativas —como elitismo, homofobia, racismo ou machismo— se atribuo ao “espírito do tempo” em que me formei a origem destes sentimentos.
A frase “Eu sou eu e minha circunstância” tomada isoladamente, como ocorre na maior parte dos casos, tende a justificar uma certa acomodação. Diríamos “O que eu posso fazer? É a minha circunstância”, assim como o escorpião que aguilhoa as costas do sapo que o ajuda a atravessar o rio justifica: “É a minha natureza, nada posso contra ela”.
Foi só há poucos anos que conheci a frase completa de Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.
As palavras têm um poder quase mágico. É admirável como um complemento pode alterar o significado da frase que o precede.
Para trás ficou qualquer possibilidade de encontrar na afirmação conforto para nossas culpas ou um convite à acomodação. Ao contrário, o conhecimento e a compreensão das circunstâncias que me formam tornam-se a base que me permite e obriga a me empenhar na sua transformação.
Do mesmo modo, devemos interpretar o fato de trazermos a nossa circunstância como elemento constituinte do nosso ser, não apenas como uma limitação à nossa plena liberdade de ser e de pensar, mas principalmente como fator que confere potência à nossa capacidade de construir e alterar.
Por consequência, quanto mais favoráveis as circunstâncias que cercaram a nossa formação, mais compelidos estamos a promover a sua transformação.
Minha leitura da circunstância ampla que hoje me envolve aponta três combates prioritários, em grande medida interdependentes, a serem travados no esforço de a “salvar”: a defesa e aprimoramento da democracia, a preservação do meio ambiente e a redução da desigualdade social, para a qual vejo a educação como principal ferramenta. Procurarei tratar destes temas nas próximas colunas.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2021/08/crenca-de-que-todos-os-pensamentos-decorrem-do-nosso-livre-pensar-nao-se-sustenta.shtml
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