O Globo (publicado em 21/10/2021)
Em 5 de outubro, comemorou-se o 33º aniversário da Constituição de 1988, que, segundo seus defensores, teria instituído no Brasil o Estado Democrático de Direito. Cabe, portanto, conceituar o que seja Estado Democrático de Direito. Ele é classicamente entendido (E. Forsthoff, “Stato di diritto”, 1964) como um conjunto de instituições eleitas que editam leis voltadas para a realização do bem comum e a salvaguarda do interesse público.
Por isso, as leis democráticas devem se revestir dos requisitos da impessoalidade e da moralidade, sempre baseada na ética e na justiça, tendo como função extinguir privilégios, desigualdades, favorecimentos, garantindo a segurança da sociedade, contra a impunidade dos criminosos.
Para dar eficácia a esse arcabouço de leis virtuosas, que somente o Estado Democrático de Direito é capaz de produzir, criam-se os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. E essas instituições devem manter sua legitimidade, ou seja: promover e respeitar os interesses e atender às necessidades do povo.
As leis todas devem ser legítimas, no sentido de não poderem ser editadas para proteger ou beneficiar os próprios legisladores, o estamento político e as pessoas que giram em torno do Estado.
A lei que cria impunidade ou privilégios não é legítima e é, portanto, incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Como ensina o insigne mestre Goffredo Telles Junior (“Estudos”, 2005): “A legitimidade das leis depende de sua harmonia com as concepções éticas dominantes da sociedade. Os imperativos da legislação em desarmonia com o núcleo das concepções éticas de uma Nação não constituem autênticos imperativos jurídicos. Vicejam à margem do Direito, como infecção no organismo nacional”.
Diante desses pressupostos da legitimidade das leis e das instituições, verifica-se que o Brasil está longe do Estado Democrático de Direito. A partir de 2016, o Congresso brasileiro nada mais faz do que aprovar leis que formam um gigantesco arcabouço de impunidade dos corruptos e de apropriação pela classe política dos recursos públicos. Essa avalanche de leis espúrias não tem paralelo em nossa República.
A técnica para conter a indignação do povo diante dessa barbárie é aprovar toda semana uma nova lei pró-corrupção, o que obriga a mídia a discutir sempre a última delas, esquecendo-se dos anteriores crimes legislativos cometidos pelo nosso Congresso.
Depois dos protestos pela desfiguração da Lei de Improbidade Administrativa, a penúltima revolta da opinião publica voltou-se para o novo Código Eleitoral, que consolida as impunidades e os privilégios dos políticos profissionais que infestam o país. Esqueceu-se a infame lei nº 13.877/2019, que extinguiu as punições eleitorais e outorga aos partidos — entidades privadas — verbas sem qualquer limite para aquisição de sedes próprias, honorários de advogados para defesa dos seus donos e filiados e ainda o pagamento das multas eleitorais com as verbas fornecidas pelo próprio Estado. Agora está em pauta o desmonte do Ministério Público com a nomeação do corregedor do MP pelos próprios deputados corruptos. Esquecemos que em 2019 foi votada a infame lei nº 13.869 — a do Abuso de Autoridade — que comina com prisão de quatro anos juízes e promotores que ousarem investigar e julgar políticos se, afinal, forem eles (certamente) absolvidos pelo STF. Daí por que as investigações, processos, sentenças e acórdãos contra notórios corruptos são anulados e arquivados em série pelos temerosos promotores e magistrados de primeira instância.
Essas leis infames são semanalmente aprovadas por mais de 80% dos congressistas, sem distinção partidária ou “ideológica”. Lembre-se também do multibilionário e inconstitucional fundo eleitoral. Agora inventaram as emendas orçamentarias “cheque em branco”, as famosas “emendas PIX”, cuja destinação (R$ 2 bilhões neste ano e R$ 3,4 bilhões em 2022) não precisa ser comprovada perante o TCU.
Claramente não vivemos num Estado Democrático de Direito, mas sim numa cleptocracia legalizada, cujas instituições — Congresso, Executivo e STF — estão inteiramente voltadas para garantir a impunidade dos políticos e o assalto legalizado aos cofres públicos. Antes, no Brasil, corrupção era crime. Agora é lei.
Enquanto houver reeleição, voto proporcional, fundo eleitoral, fundo partidário, emendas parlamentares ao Orçamento, nomeação de ministros do STF pelo presidente da República, e não tivermos voto distrital, candidaturas independentes e sistema de recall, teremos sempre nos governando essa casta inqualificável de “homens públicos”.
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