Estadão (publicado em 06/11/2021)
O jurista Modesto Carvalhosa, de 89 anos, é uma das vozes mais respeitadas do País quando se trata de combate à corrupção. Organizador e coordenador de uma obra que se tornou referência na área – O Livro Negro da Corrupção (1995) -, Carvalhosa é um defensor entusiasmado da operação Lava Jato e da possível candidatura à Presidência do ex-juiz e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em 2022.
Segundo Carvalhosa, Moro, que se filia ao Podemos em ato marcado para a próxima quarta-feira, 10, em Brasília, tem tudo para ser o principal candidato da chamada “terceira via” se a sua candidatura for confirmada. “Moro é uma liderança natural evidente”, diz. “Hoje, não vejo ninguém no Brasil com as características que ele tem para ser uma opção às candidaturas de Bolsonaro e Lula.”
Nesta entrevista, Carvalhosa afirma, porém, que o comprometimento de Moro com a moralidade na política e na gestão pública não bastará para a sua candidatura decolar. “O importante para um líder é ter um projeto para o País – e não pode ser só um projeto anticorrupção. Tem de ser um projeto para tirar da miséria metade do povo brasileiro e promover a regeneração dos costumes políticos.”
O sr. tem uma ligação histórica com a luta contra a corrupção e desde o princípio foi um defensor empolgado da Lava Jato. Como está vendo a possível candidatura do ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro à Presidência em 2022?
Vejo de uma maneira muito positiva, entusiasmada, porque nas eleições do ano que vem precisamos de lideranças naturais para se contrapor às candidaturas dos dois extremos, da direita e da esquerda. Como o Bolsonaro e o Lula, o Moro é uma liderança natural evidente. Não adianta querer fabricar líderes, ficar botando no jornal “procura-se um líder”, para resolver a candidatura do centro político. Hoje, não vejo ninguém no Brasil com as características que o Moro tem para entrar na disputa com o Bolsonaro e o Lula. A candidatura dele não é só possível como necessária, para ser uma opção aos que estão aí.
Considerando que o Moro não tem experiência política e eleitoral, o sr. acredita que a candidatura dele, se confirmada, tem chance de decolar?
Um candidato não precisa ter participado de outras eleições ou ter uma vivência política. Também não precisa ter uma experiência administrativa. O Bolsonaro não tinha nenhuma. O Lula também não. O importante para um líder é ter um projeto para o País. Não pode ser só um projeto anticorrupção. Tem de ser um projeto para tirar o Brasil da situação social em que se encontra, para tirar da miséria metade do povo brasileiro, e para promover a regeneração dos costumes políticos do País.
Que “regeneração” seria essa a que o sr. se refere?
Temos de apresentar os meios e as possibilidades de levar adiante o que é importante para o País. Não adianta o candidato só dizer eu quero isso, eu quero aquilo. Se não fizermos uma reforma política substancial, que acabe com a reeleição, que foi um desastre, proponha o voto distrital puro e elimine o fundo partidário e o fundo eleitoral, fica difícil levar adiante qualquer projeto. É preciso acabar também com essas sórdidas emendas parlamentares, que estão sendo chamadas de “emendas Pix”. Hoje, o sujeito pega o dinheiro e coloca no bolso direto. Não precisa nem passar pelo Tribunal de Contas. Além disso, temos de fazer uma nova Constituição, que permita que o Estado que está degenerando o País não atrapalhe mais o nosso desenvolvimento.
Agora, a gente conhece as ideias do Moro nas áreas de combate à corrupção, jurídica, institucional e de segurança pública. Mas não sabe quase nada do que ele pensa sobre a economia. Isso não pode ser um problema para a candidatura dele, caso ela se confirme?
Realmente, ninguém conhece as ideias dele neste campo. Ele vai ter de se posicionar. Nem eu, como admirador dele, conheço suas ideias a respeito da economia, se ele tem uma posição mais liberal ou mais estatizante. Ele tem de se preocupar com as pessoas e não só com a evolução do PIB (Produto Interno Bruto). Como eu falei, ele tem de se preocupar em alimentar o povo e em acabar com a fome. Para isso, é necessário promover uma reforma muito grande do Estado brasileiro, que desperdiça os seus recursos com a manutenção de uma casta política e de uma casta de servidores. Nós gastamos hoje no Brasil mais de R$ 1 trilhão por ano só com a folha de pagamento dos servidores e temos um serviço público muito deficiente. Todos os recursos vão para sustentar o próprio Estado. Então, a recuperação da economia, do emprego, passa por acabar com os privilégios dos políticos e do funcionalismo.
Na sua visão, é possível haver uma união das forças do centro político em torno de um candidato único já no primeiro turno?
Acredito que, se essas forças que não têm ligação com os extremos não se unirem em torno de um candidato consistente já no primeiro turno, vai ser muito difícil que elas consigam ir para o segundo turno. Claro que é improvável ter só um candidato além de Lula e Bolsonaro. Podem ser três, quatro candidatos. Mas é preciso ter muito juízo para livrar o Brasil dessas duas perspectivas desastrosas, que são a da continuidade do atual governo e a da volta do governo corrupto e estatizante do Lula.
Como o Moro ainda não anunciou se será mesmo candidato à Presidência, é possível que, ao final, ele decida se candidatar ao Senado. Na sua opinião, se isso ocorrer, quem deve receber o apoio dos lavajatistas na eleição para a Presidência?
O Moro é, sem dúvida, o melhor nome para congregar todas as forças anticorrupção do Brasil. Agora, entre os que estão se propondo a ser candidatos, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que deverá disputar as prévias do PSDB, me parece o nome mais viável, não pela sua luta contra a corrupção, mas pela sua conduta como governante. Esta é uma opinião de cidadão, sem nenhuma base institucional. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) também seria um candidato estupendo para sustentar um discurso em defesa da moralidade pública, mas ele precisa ter muito apoio para viabilizar a sua candidatura.
Com a divulgação da troca de mensagens de Moro com os procuradores da Lava Jato e a anulação dos processos contra Lula no STF (Supremo Tribunal Federal), a imagem dele não ficou arranhada? Isso não pode atrapalhar sua candidatura à Presidência?
O que ficou arranhada foi a imagem do Supremo Tribunal Federal, que teve essa violenta reação a favor dos corruptos que tinham sido condenados, em várias instâncias, como o Lula e outros, e não a do Moro. O Moro não teve arranhão nenhum em sua idoneidade. Mesmo porque as sentenças que ele produziu para denunciar o esquema de corrupção no Brasil continuaram íntegras quanto às suas provas e à sua razão de ser. As decisões tomadas pelo Ministério Público nas suas denúncias e as sentenças proferidas pelo Moro e depois confirmadas por outros tribunais nada têm a ver com as mensagens. Elas não tiveram nenhuma influência sobre as decisões tomadas.
Qual a sua avaliação sobre essa troca de mensagens com os procuradores da Lava Jato?
A divulgação das trocas de mensagens foi feita de maneira ilegal. Como o próprio Supremo reconhece, a origem dessas mensagens foi criminosa. Elas também podem ter sido descontextualizadas. Então, não dou qualquer crédito a essas mensagens, cujos autores foram processados por tê-las divulgado. As mensagens são coisas normais entre procurador e juiz. Os procuradores são parte da Justiça. Isso foi um pretexto criado pelos próprios corruptos e o Supremo, que é a favor da impunidade e aproveitou para colocar na rua réus condenados em três instâncias, como o Lula. O escândalo é ter um Supremo Tribunal Federal dessa espécie no Brasil e não a conduta do Moro e dos procuradores da Lava Jato.
Como o sr. viu a decisão de Moro de deixar o Judiciário para participar do governo Bolsonaro? Isso não arranhou também a imagem dele?
Como 57 milhões de brasileiros, o Moro acreditou que o Bolsonaro iria fazer um governo decente, digno, e nos livrar dos corruptos, do Centrão, da velha política. Acreditou também que ele iria criar condições de combate efetivo ao crime organizado e à corrupção. Na minha leitura, o Moro ficou entusiasmado com a possibilidade de lutar contra o crime organizado no plano nacional. Logo no início do governo, apresentou aquele projeto da lei anticrime, mas ele foi aprovado de forma totalmente desfigurada pelo Congresso. Depois, percebeu que o governo estava fazendo o contrário de tudo o que tinha prometido e resolveu ir embora. Mas eu acredito que a posição dele não se desgastou, porque saiu do governo mostrando as razões do seu inconformismo com os destinos que o governo havia tomado. Acho que ele se engrandeceu, ao sair da forma digna e corajosa que saiu, reconhecendo que fez um erro brutal de entrar num governo desses.
Como o sr. se coloca em relação ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
O Bolsonaro tem 200 questões pelas quais poderia ser acusado de crime de responsabilidade. Agora, no sentido da oportunidade deste impeachment, tenho a impressão de que é muito melhor o eleitorado assumir a sua responsabilidade na próxima eleição e dar um basta a esse governo de forma eleitoral, democrática. Nesta altura dos acontecimentos, em novembro de 2021, a um ano das eleições, tenho a impressão de que não é o caso. De qualquer maneira, o que houve na pandemia foi um crime de Estado. Ou seja, o Estado brasileiro, a partir da presidência da República, colocou o povo brasileiro em uma situação de insegurança sanitária gravíssima, que teve como resultado a morte de mais de 600 mil pessoas. Mais do que ser apenas uma questão de impeachment, o que aconteceu na pandemia abre a possibilidade de o presidente da República ser julgado pelo Tribunal Internacional de Haia, por crime contra a humanidade. Acredito que a CPI da Covid não pegou a profundeza do que aconteceu.
Ao estimular a aglomeração e o chamado “kit covid” e ao desestimular o uso de máscara e o confinamento, o Bolsonaro orquestrou um crime de Estado, pelo qual cabe aos familiares das vítimas, se puderem comprovar que elas poderiam ter sido salvas se não fosse a ação desastrosa do presidente e dos ministros envolvidos na questão, uma reparação permanente. Isso se aplica também aos que contraíram a doença, mas sobreviveram, se puderem comprovar que não teriam as sequelas que têm.
Nos últimos anos, o Executivo, o Congresso, a Procuradoria-Geral da República e o STF tomaram várias medidas que dificultaram o combate à corrupção, na direção oposta do que Moro propunha. Como o sr. analisa essas decisões?
O que ocorreu foi a criação de uma confederação da impunidade, envolvendo os três Poderes e por consequência também a Procuradoria-Geral da República. O Supremo Tribunal Federal se tornou um grande partido político, o partido da impunidade. Como todos os partidos tradicionais brasileiros praticaram a corrupção, o que fez o Supremo? Acabou com as condenações dos políticos e retomou a execução da pena só após o trânsito em julgado. O Brasil é o único país, entre os 193 países da ONU, que tem essa regra. Em troca, os senadores seguraram a CPI da Lava Toga, cujo objetivo era fazer uma devassa no STF, para saber o que acontece lá, e os pedidos de impeachment de ministros da Corte. O Poder Legislativo aprovou diversas leis de impunidade, uma atrás da outra, no sentido de dizer que “nós, a classe política, queremos roubar em paz, não queremos mais leis nem instituições que nos persigam”. O Congresso aprovou medidas como a Lei de Abuso de Autoridade contra juízes, promotores e delegados e anestesiou a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei da Ficha Limpa. Houve uma progressiva destruição de toda a legislação e das instituições de combate à corrupção, com o aparelhamento da PGR e da Polícia Federal, que levou ao desmantelamento da própria Lava Jato, como força-tarefa. Antes, no Brasil, a corrupção era crime. Hoje, a corrupção foi legalizada. O Brasil, hoje, é uma cleptocracia legalizada.
O sr. foi acusado de ter se beneficiado da Lava Jato como advogado dos acionistas da Petrobras e de ter se associado a procuradores da força-tarefa para criação de um fundo contra a corrupção, que seria formado com parte dos recursos recuperados pela Justiça e administrado pelo Deltan Dallagnol, ex-coordenador do grupo. O que o sr. tem a dizer sobre isso?
Isso é uma fake news sem nenhum fundamento, contra a qual tomei as providências judiciais devidas. Nunca tive relação com a Petrobras e com os procuradores da República que cogitaram ter esse fundo. Não tenho ligação alguma com eles. Pode procurar nas minhas ligações, nas minhas mensagens do período. Fiquei sabendo só pelos jornais dessas questões todas. Isso foi uma represália contra o fato de eu ter entrado com pedidos de impeachment no Senado contra os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, do Supremo. Não foi mera coincidência.
O sr. se beneficiou como advogado dos acionistas da Petrobras dos julgamentos da Lava Jato?
Nenhum dinheiro que veio dos Estados Unidos pela confissão que a Petrobras fez lá dos crimes que prejudicaram os investidores veio para os acionistas brasileiros. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, do STF, isso foi para o Tesouro e para a própria Petrobras. Esses fundos jamais foram destinados à reparação dos acionistas brasileiros prejudicados pelos atos de corrupção da Petrobras. Como advogado dos acionistas brasileiros da Petrobras, portanto, eu não ganhei nada com isso.
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