Estadão (publicado em 21/11/2021)
A transparência do processo orçamentário, que diz respeito à aplicação de recursos financeiros do Estado, está na ordem do dia do debate político. Sua prática vem sendo questionada em razão dos procedimentos das emendas do relator-geral do Orçamento no Congresso e das implicações, não republicanas, do seu sigiloso uso político para a obtenção, em conjugação com o Executivo, de apoio parlamentar.
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu um julgamento sobre a matéria, a partir do substancioso e qualificado voto da relatora, ministra Rosa Weber. A questão é de grande alcance. Transcende os aspectos técnicos. Merece, no seu rescaldo e possíveis desdobramentos, discussão e exame.
A decisão do STF analisa o princípio da publicidade que constitucionalmente rege a administração pública no País e os atos do governo em todas as suas instâncias. O princípio é um dos pressupostos da democracia, que se baseia no exercício em público do poder comum, na límpida formulação de Norberto Bobbio. Com efeito, o público, por ser o comum a todos numa República, deve ser do conhecimento de todos. Transparência e visibilidade do poder dão à cidadania a condição de controle da ação dos governantes e dos seus atos. O que se mascara e se esconde põe em questão o chão da vida política democrática. Enseja o poder invisível de um bobbiano “cripto” e “sotto” governo.
A publicidade tem a alargada dimensão adicional de ser um critério de justiça e ética, reveladora do ilícito. Todas as ações relativas ao direito de outros homens que não forem compatíveis com a publicidade são injustas, afirma Kant ao formular o conceito transcendental de direito público no Projeto da Paz Perpétua.
Uma ação conduzida em segredo não é apenas injusta em relação a terceiros que são por ela afetados. Explicita o potencial de uma transgressão. Qual agente público pode afirmar com desfaçatez, em público, sem escandalizar, que usará dinheiro do contribuinte para atender a seus interesses privados? É o caso, por exemplo, das “rachadinhas”.
O empenho no ocultamento de ação usualmente tem como objetivo esconder o ilícito de uma transgressão ética. É por essa razão de alcance geral que Rosa Weber, no seu voto, relembrou a afirmação do juiz Louis Brandeis, da Corte Suprema dos EUA: “A luz solar é o melhor dos desinfetantes”.
Numa democracia, voltada para a res publica, as boas leis e os seus princípios, como o da publicidade da administração pública, positivada no artigo 37 da Constituição, devem ser conjugados com os bons costumes. Expor à luz do sol os maus costumes inerentes às emendas do relator-geral do Orçamento foi do que tratou o STF na sua decisão, ao exercer a sua função precípua da guarda da Constituição.
Apontou que as emendas do relator não seguem os procedimentos previstos para outras emendas parlamentares. Ampliaram-se, em comparação ao exercício financeiro anterior, na quantidade (aumento de 523%) e nos valores consignados (374%). Não guardam relação com os propósitos originários do papel das emendas do relator, voltadas apenas para erros e omissões de ordem técnica e legal e à organização sistemática das despesas conforme suas finalidades.
Daí a decisão, expressa no voto de Rosa Weber: “Constatação objetiva da ocorrência de transgressão em postulados republicanos da transparência da publicidade e impessoalidade no âmbito da gestão estatal dos recursos públicos. Práticas institucionais condescendentes com a ocultação dos autores e beneficiários das despesas decorrentes de emendas do relator do orçamento federal. Modelo que institui inadmissível exceção ao regime da transparência no âmbito dos instrumentos orçamentários”.
O STF assentou a existência de descumprimento de preceito constitucional fundamental. Consignou, assim, um efetivo limite ao poder do que o Congresso pode chancelar em matéria de emendas do relator.
Não cabe alegar que o trâmite destas emendas obedecem ao regimento interno do Congresso. O STF não assumiu função que cabe ao Congresso. Definiu que as normas do seu regimento interno devem estar conformes aos preceitos constitucionais da publicidade e da transparência. As normas do regimento que permitem as emendas do relator não estão em conformidade com estes requisitos. Por isso não são válidas. Ensejam os maus costumes que corroem a boa lei dos princípios constitucionais da administração pública e dos atos do poder e do governo em todas as instâncias, inclusive o Poder Legislativo.
Padre Antônio Vieira trata dos pecados de omissão e os de consequência. Os primeiros são os que mais frequentemente se cometem. Os segundos são os que, depois de acabados, ainda duram, por isso são pecados de consequência. O STF, na linha do preciso voto de Rosa Weber, não incidiu na facilidade de um pecado de omissão jurídica. Suspendeu todas as consequências do pecado jurídico de descumprimento de um princípio fundamental da Constituição – o da publicidade e transparência da ação governamental numa democracia.
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