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As balsas do rio Madeira

Folha (publicado em 18/12/2021)

A fotografia no jornal impactou-me pelo inusitado e pela beleza intensa. Perfiladas em múltiplas linhas paralelas entre si e perpendiculares às margens, uma série de casinhas geminadas flutuava no rio tendo por fundo a vastidão da floresta tropical. Precisei recorrer à legenda da foto para entender que se tratava de balsas de garimpo ilegal, que utilizam mercúrio para extrair ouro da água.

Nossa cabeça tem a faculdade de fazer associações sem nos pedir licença e assim, diante dos olhos de minha mente, projetou-se imediatamente a cena dos helicópteros sobrevoando a selva vietnamita ao som da “Cavalgada das Valquírias”, prontos a despejar suas bombas de Napalm. A mesma beleza natural, e a mesma sensação de medo e impotência diante da ameaça e do desfecho inevitável.

O filme em questão é “Apocalypse Now” de Francis Coppola e foi inspirado no livro “No coração das trevas” de Joseph Conrad. Esse foi um dos maiores romancistas da língua inglesa que, nascido na Ucrânia e educado em polonês e francês, só aprendeu o inglês —que falava com forte sotaque– já adulto. Em que pese a minha associação, nem o filme nem o livro trazem, a meu ver, qualquer aspecto ecológico.

Ambos têm por pano de fundo a crítica ao imperialismo. No caso de Coppola, trata-se da atuação americana na guerra do Vietnã. Já Conrad tem como cenário os horrores da dominação belga sobre o Congo no reinado de Leopoldo II, trazendo como aspecto econômico o comércio de marfim, procedente do abate de elefantes pelos nativos sob o jugo colonialista.

Curiosamente, foi Romain Gary, também um escritor de origem russo-polonesa escrevendo em uma língua para si estrangeira, o francês, que utilizou o mesmo tema da caça aos elefantes, no seu romance “Raízes do Céu”, ganhador do Goncourt, o mais importante prêmio da literatura francesa, em 1956.

O livro, que traz como personagem central um ativista que combate os caçadores de elefantes no Chade, é considerado por muitos o primeiro romance ecológico e mereceu também uma versão cinematográfica que, apesar de dirigida por John Ford, não está à altura do texto.

Poucos dias após a publicação da foto pela Folha, a Polícia Federal, com apoio da Marinha e do Ibama, deflagrou uma operação que incendiou 131 das cerca de 300 balsas que se estima que estivessem em operação no Rio Madeira. Embora motivada pela denúncia na imprensa —o que não deveria ser necessário—, a Operação Uiara foi uma surpresa positiva.

Muito poucas vezes neste governo impôs-se a lei de proteção ambiental de maneira tão efetiva, sem que a ação fosse rapidamente desautorizada por “instâncias superiores”. O Greenpeace comemorou a operação no Twitter, afirmando que: “Esta ação prova que o Brasil tem capacidade para enfrentar a ilegalidade e garantir a proteção dos nossos rios, florestas e comunidades tradicionais. Basta vontade política”.

A imposição da lei ambiental pelo governo, através de suas diversas instâncias, é condição imprescindível para a contenção do desmatamento. A atuação decisiva das autoridades não apenas contribui diretamente para impedir a destruição do ambiente, como tem um efeito indireto de importância ao menos equivalente, que é o de infundir confiança na comunidade de governos e investidores internacionais de que o país está determinado e é capaz de proteger seu vasto patrimônio ambiental.

Será com base nessa credibilidade internacional que o país se qualificará para receber os recursos que o mundo —governos e empresas privadas— está comprometido a investir na redução das emissões de gases de efeito estufa, seja através do mercado de créditos de carbono, de serviços florestais, ou mesmo contribuições diretas, como no caso do Fundo Amazônia.

Somente com a injeção desses recursos o país terá uma chance de cumprir com os compromissos assumidos recentemente em Glasgow e, o que é mais importante, beneficiar-se das suas enormes vantagens comparativas em um ciclo econômico de baixo carbono.

Pois, se a imposição da lei é condição necessária à proteção da floresta, ela certamente não é suficiente. Os operadores das balsas do rio Madeira, ou dos tratores e motosserras que executam o trabalho sujo do desmatamento, são indivíduos que precisam ganhar seu sustento, o que os torna suscetíveis de contratação pelas organizações criminosas que atuam no roubo de terras públicas —também chamado grilagem— ou no garimpo.

Uma vez obtidos os recursos, restará ainda o desafio, nada trivial, de fazer com que cheguem às populações locais e promovam efetivamente o desenvolvimento sustentável da região. Não é difícil para o mundo concluir na COP 26 que a floresta em pé é muito mais valiosa para a humanidade do que derrubada. Difícil é conseguir que esta verdade universal seja também válida para as mulheres e homens da Amazônia.

Há grupos de especialistas, como os mais de 60 cientistas de diversas instituições nacionais e internacionais, reunidos sob a coordenação de Beto Veríssimo (Imazon) e Juliano Assunção (PUC-Rio) na iniciativa Amazônia 2030 (Amazonia2030.org.br), que têm se dedicado ao estudo desses problemas e elaborado propostas consistentes e inovadoras. Será importante que nossos candidatos presidenciais tomem conhecimento desses projetos e se empenhem seriamente na sua implementação.

Mais de 60 anos após o alerta de ​Romain Gary, continua em curso o processo de destruição da vida selvagem. Recentemente os elefantes da selva africana foram incluídos na “lista vermelha da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza)”, que elenca as espécies sob ameaça crítica de extinção. Se não formos capazes de superar as complexidades da proteção ambiental, esses animais não terão uma segunda chance. Nós tampouco.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2021/12/as-balsas-do-rio-madeira.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher